SPE NOS EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS E RECUPERAÇÃO JUDICIAL.

Forma usual de estruturar empreendimentos imobiliários é a constituição de Sociedades de Propósito Específico – SPEs.

Em resumo, a SPE segrega cada “projeto” dos demais empreendimentos de uma incorporadora, e traz diversas vantagens, uma vez que seu objeto social tem por escopo a realização de obra determinada, assumindo obrigações exclusivas e autônomas. Neste sentido, após a realização da obra e venda das unidades, se procede liquidação das obrigações sociais e se encerra a SPE.

É comum, inclusive, que cada empreendimento tenha investidores específicos, sendo bastante prático para o incorporador se utilizar da estrutura societária da SPE para cada projeto, de forma a tratá-lo de forma segregada contabilmente.

Tal mecanismo ganhou bastante uso após o caso da quebra da Encol[1], em que a segurança de compra de imóveis na planta foi bastante abalada. Em 1999 quando da falência da Encol S.A., a legislação aplicável aos contratos de incorporação imobiliária não trazia a segurança necessária para aquisição de unidades em construção.

É necessário destacar, porém, que o uso apenas da SPE para estruturar empreendimento imobiliário não é capaz, por si só, de afastar a insegurança de que os recursos auferidos com a venda de unidades, sejam destinados para fins diversos, bem como que o mútuo obtido de agentes financeiros seja empregado na consecução de outros projetos do incorporador.

Assim a entrada em vigência da Lei n.° 10.931/2004 constituiu importante marco para retomada da segurança jurídica na aquisição de imóveis na planta, ao inserir na Lei n.° 4.591/64, os artigos 31-A a 31-F, pelos quais foi instituída a possibilidade do incorporador se submeter ao regime de afetação, “pelo qual o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes”.

O §1° do art. 31-A, por sua vez estabelece: “O patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva”.

Para além de restabelecer confiança no mercado imobiliário no que se refere à compra de unidades em construção, discussão tem surgido em relação a possibilidade de SPEs aderirem à recuperação judicial, considerando que são idealizadas para que a eventual falência da incorporadora não as “contamine”.

O tema tem sido discutido em alguns casos esparsos, sendo que o entendimento que vem se consolidando é no sentido de que a SPE sem patrimônio de afetação pode ser objeto de recuperação judicial. Tal interpretação vem ocorrendo, caso a caso, ante a inexistência de previsão legal específica.

Contudo, a questão é bastante polêmica, considerando a natureza jurídica da SPE, que é uma modalidade com fim específico e prazo determinado, elementos que por si só se diferem dos requisitos da Lei nº 11.101/2005, cujo principal objetivo é a preservação e a continuidade da empresa.

A Lei 11.101/2005 prevê a possibilidade de planos de recuperação de sociedades a longo prazo – àquelas de prazo indeterminado – o que não é o caso das SPE´s, que teoricamente não poderiam se beneficiar desta lei.

Porém e quando se refere à SPEs com patrimônio de afetação, a jurisprudência tem caminhado no sentido de não admitir sua submissão ao regime de recuperação, considerando que o art. 31-F da Lei n.° 4.591/64, prevê que os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem os patrimônios de afetação constituídos, não integrando a massa concursal o terreno, as acessões e demais bens, direitos creditórios, obrigações e encargos objeto da incorporação.   

Em recente julgado, o TJRJ[2] decidiu que SPE´s com patrimônio de afetação não podem se valer da Lei 11.101/2005 que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência.

O principal argumento da decisão se baseou no entendimento de que o patrimônio de afetação possui autonomia em relação ao patrimônio do incorporador, não respondendo por dívidas estranhas à sua finalidade, bem como porque seu objetivo é de proteger os interesses dos adquirentes, em caso de insolvência do incorporador. Na decisão foram citadas as considerações contidas em parecer do Prof. Fábio Ulhoa Coelho, elaborado exclusivamente para a recuperação judicial da sociedade em questão, que assim dispôs:

“(…) E, aliás, precisamente este o significado jurídico da afetação: determinados bens e direitos não são mais da livre disponibilidade da incorporadora, porque devem ser, a partir da especialização patrimonial, administrados por ela exclusivamente para a realização da finalidade indicada, ou seja, a construção daquele condomínio edilício em particular. Há um vínculo entre aquela parcela afetada do patrimônio da incorporadora e a conclusão de um determinado empreendimento. Nada pode desvirtuar este vínculo, enquanto ele perdurar na forma da lei. (…) entre as consequências da decisão empresarial de constituição do patrimônio de afetação, como decorrência da indisponibilidade dos bens afetados, encontra-se a impossibilidade de recuperação judicial. afinal, não tendo mais a livre disponibilidade dos elementos patrimoniais afetados (ativos e passivos), não os possui a incorporadora como meios para tentar se recuperar das dificuldades que alega estar enfrentando. em suma, a incorporadora que opta pelo regime de afetação patrimonial não tem direito à recuperação judicial”.

Por outro lado, na mesma decisão do TJRJ, foi acolhido entendimento de que as SPE´s sem patrimônio de afetação se enquadram no princípio da preservação da empresa, e poderiam gozar os benefícios da lei de recuperação.

No mesmo sentido, o TJMG[3], em recente decisão, para além de referendar o entendimento de que as SPEs sem patrimônio de afetação podem pleitear pela recuperação, fez distinção temporal pela qual, se as SPEs com patrimônio de afetação, a priori, não se submetem ao regime recuperacional, após a conclusão do empreendimento, mediante o registro das unidades no cartório de registro de imóveis, a afetação se extinguiria, e, portanto, seria possível pleitearem pela recuperação judicial. Tal entendimento, se fundamentou em interpretação do artigo 119, IX da Lei de recuperações[4]:

“EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. SOCIEDADE DE PROPÓSITO ESPECÍFICO (SPE) COM PATRIMONIO DE AFETAÇÃO. CONCLUSÃO DO EMPREENDIMENTO MEDIANTE REGISTRO NO CRI. EXTINÇÃO DA AFETAÇÃO. ART. 31-E, DA LEI N.º 4.591/1964. AUSÊNCIA DE ÓBICE AO PROCESSAMENTO DA RECUPERAÇÃO. RECURSO NÃO PROVIDO. A SPE – Sociedade de Propósito Específico, conforme se denota da previsão contida no art. 981, do Código Civil, trata-se de pessoa jurídica criada com a finalidade única de executar um determinado empreendimento ou desenvolver um projeto específico. A Lei nº 11.101/05, nas exceções elencadas em seu art. 2º, não faz nenhuma menção às SPEs. Todavia, a interpretação sistemática da norma autoriza a conclusão de que não é possível o processamento da recuperação judicial das referidas sociedades com patrimônio de afetação; ao contrário, é permitida a recuperação judicial das SPEs sem patrimônio de afetação. Nos termos do inciso I, do art. 31-E, da Lei n.º 4.591/1964, o patrimônio de afetação extinguir-se-á pela “averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento”. Concluídas as obras do empreendimento desenvolvido pela requerente e registradas as matrículas individualizadas no Registro de Imóveis, é certo que ocorreu a extinção do patrimônio de afetação. Não mais existente o patrimônio de afetação da SPE, não há óbice legal ao processamento de sua recuperação judicial, ante a ausência de vedação legal. Recurso não provido”.

A questão ainda carece de maior apreciação pelo poder judiciário, o que se denota em decisão do STJ que acolheu pedido de tutela provisória apresentado por JOÃO FORTES ENGENHARIA S.A. e outras, visando à atribuição de efeito suspensivo a Recurso especial interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro[5], que negou a possibilidade de SPEs com patrimônio de afetação aderirem à recuperação judicial. Transcrevemos abaixo a decisão dada no pedido de tutela provisória:

“…. No caso, a questão central posta a desate cinge-se à definição, à luz da interpretação da legislação infraconstitucional invocada no apelo nobre interposto pela primeira requerente, a respeito da possibilidade de que as Sociedades de Propósito Específico (SPEs) que compõem um mesmo grupo empresarial, ainda que possuam patrimônio de afetação, possam ser submetidas ao processo de recuperação judicial. Pesquisando a base jurisprudencial desta Corte Superior, observa-se que o tema ventilado ainda não foi objeto de exame no âmbito do STJ, não havendo o registro de nenhum precedente específico. Assim, verificada a razoabilidade da tese ventilada, bem como a plausibilidade, ao menos em tese, do direito invocado no apelo nobre interposto, deve ser reconhecida a presença do pressuposto relacionado ao fumus boni iuris na hipótese….”

A jurisprudência que existe sobre o tema é ainda muito incipiente, mas já caminha no sentido de permitir que SPEs sem patrimônio de afetação, possam se utilizar da recuperação judicial para sair da crise pela qual atravessam, enquanto nos casos em que as SPEs adotaram patrimônio de afetação, o entendimento é da incompatibilidade com o regime recuperacional.

A definição desta questão é de grande relevância para todo o mercado imobiliário, sendo importante que o judiciário pacifique a questão de forma definitiva, para que a definição do tema mantenha a segurança aos adquirentes de unidades em construção, conforme idealizado pela Lei n.° 10.931/2004, ao ter criado a figura jurídica do patrimônio de afetação, de forma a garantir que os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atinjam os patrimônios de afetação constituídos.

Rodrigo Elian Sanchez e Aline Hitomi Kawakami Yamaguchi


[1] CÂMARA, Hamilton Quirino. Falência do incorporador imobiliário: o caso Encol. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

[2] TJ-RJ – AI: 00322404220208190000, Relator: Des(a). Luciano Saboia Rinaldi de Carvalho, Data de julgamento: 30/09/2020, Sétima Câmara Cível, Data de publicação: 08/10/2020.

[3] TJMG – Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.20.515429-7/001, Relator(a): Des.(a) Corrêa Junior, 6ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 23/02/2021, publicação da súmula em 26/02/2021).

[4] “Art. 119. […] IX: os patrimônios de afetação, constituídos para cumprimento de destinação específica, obedecerão ao disposto na legislação respectiva, permanecendo seus bens, direitos e obrigações separados dos do falido até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento de sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer”.

[5]   STJ, PEDIDO DE TUTELA PROVISÓRIA nº 3572 – RJ (2021/0265210-4), Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 19 de agosto de 2021.