SOBRE A PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR ABERTA: QUANDO ELA PODE SER OBJETO DE INVENTÁRIO E QUANDO PODE SER TRANSMITIDA DIRETAMENTE AOS BENEFICIÁRIOS, SEM A NECESSIDADE DE INVENTÁRIO.

1. Breve introdução da história da previdência no Brasil:

 

A previdência no Brasil não é tão antiga. Ela iniciou em 1923, com a lei denominada “Lei Eloy Chaves”, que foi pioneira em criar regulamentações sobre aposentadorias e pensões, mais precisamente os CAPs (Caixas de Aposentadorias e Pensões) mas apenas no setor ferroviário. Cada “CAP” respondia pelo pagamento dos aposentados de uma determinada empresa.

 

Entre os anos de 1920 e 1930 os CAPs se estenderam para outros ramos, tais como aviação, navegação marítima e portuária.

 

Em 1933, além dos CAPs, foram criados os “Institutos de Aposentadorias e Pensões” (IAPs). Basicamente, a diferença era que, enquanto a CAP era responsável pelas aposentadorias de uma única empresa, o IAP beneficiava toda uma categoria profissional e era de abrangência nacional.

 

Em 1960, houve a unificação das normas dos CAPs e IAPs, incluindo a fixação de um valor máximo de contribuições e estabelecendo os benefícios. Em seguida, em 1966 o CAPs e o IAPs foram extintos, dando origem ao Instituo Nacional de Previdência Social (INPS).

 

Pouco tempo depois, em 1990 o INPS também foi extinto e houve a criação do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), o atual órgão que administra a previdência pública.

 

2. Sistema de previdência atualmente em vigor no Brasil:

 

Antes de adentrar ao tema principal do presente artigo, é adequado e pertinente explicar que a previdência no Brasil, atualmente, se divide em pública e privada, sendo que a principal distinção entre elas é, em resumo, a sua acessibilidade.

 

A previdência pública, como o próprio nome diz, pode ser contratada por qualquer pessoa, podendo ser física ou jurídica. Já a previdência privada – que se subdivide em fechada e aberta – é destinada a usuários específicos.

 

A previdência privada fechada se caracteriza por sociedades ou fundações criadas com objetivo de instituir planos privados de concessão de benefícios complementares ou assemelhados aos da previdência social, acessíveis aos empregados ou dirigentes de uma empresa ou de um grupo de empresas, que por sua vez são denominadas patrocinadoras (ex. AvonPrev, EmbraerPrev, Gerdau Previdência etc.). Elas são fiscalizadas pela Susep (Superintendência de Seguros Privados).

 

A previdência privada aberta é aquela corriqueiramente oferecida por bancos e seguradoras, são exemplos: o VGBL e o PGBL. O PGBL “Plano Gerador de Benefício Livre” é classificado como uma previdência complementar e o VGBL “Vida Gerador de Benefício Livre” classificado como um seguro pessoal.

 

E é sobre esses produtos de previdência privada aberta oferecidos pelos bancos e seguradoras que iremos discorrer no presente artigo.

 

3. As peculiaridades que caracterizam a previdência como aposentadoria ou como investimento:

 

Feitas as explicações acima, é importante esclarecer que a previdência pode ser utilizada tanto como um sistema de aposentadoria, quanto como um investimento.

 

O ponto é que, a depender das especificidades do caso concreto, ou seja, se ficar caracterizado que a previdência foi utilizada como meio de investimento, os valores aportados em planos de previdência privada complementar aberta devem integrar o inventário como herança e ser objeto da partilha (REsp 2.004.210).

 

Todo o imbróglio gira em torno de como a natureza dos aportes financeiros é interpretada, ou seja, analisar as especificidades do caso concreto para avaliar se aquele produto é um investimento, ou uma aposentadoria com características de pensão, na medida em que “o denominado plano VGBL, nos termos do art. 794 do Código Civil, tem natureza de contrato de seguro de vida, não integrando o acervo hereditário do de cujus, para todos os fins de direito, o que afasta, por consequência, a incidência do ITCMD.”[1]

 

Para que a previdência privada complementar aberta não necessite ser transmitida por inventário em caso de falecimento do titular, deve haver características de que sua finalidade quando constituída, era a de pensão/aposentadoria.

 

Além disso, e ainda que o titular opte por realizar um aporte de valor elevado em uma fase já avançada da vida, deve ficar atento para que o montante aplicado não seja maior do que o limite de 50% que a lei fixa para que o titular dos bens possa deles dispor livremente, em prejuízo dos herdeiros necessários.

 

No voto-vista proferido no Recurso especial mencionado acima (REsp 2.004.210) a ministra Isabel Gallotti analisou a questão com lupas, tendo acompanhado a posição do relator e feito um importante destaque: em caso de morte do titular, o saque dos recursos pelo beneficiário não pode prejudicar a legítima pretensão dos herdeiros necessários, destacando que “entendimento contrário, data maxima venia, tornaria possível que, a margem do regime sucessório disciplinado por lei cogente, fosse permitida a burla à legítima em prol de terceiros ou de apenas um dos herdeiros necessários”.

 

Vem se consolidando, portanto, o entendimento de que quando uma pessoa já em idade avançada faz um aporte único de um valor expressivo que possui, para investimento em um plano de previdência privada aberta, há o risco de a fazenda estadual questionar a finalidade do aporte (sob o argumento de simulação para fugir da incidência do imposto causa mortis – ITCMD) e, com isso, não só fazer o valor ser transmitido por inventário, como também fazer incidir o ITCMD.

 

Os critérios utilizados para caracterizar o desvirtuamento do PGBL ou do VGBL são, em geral: (i) o resgate a curto prazo desacompanhado de risco social (ex. óbito do participante);  (ii) a alocação de boa parte do patrimônio em tais fundos com o intuito de mera multiplicação de recursos; (iii) blindagem patrimonial (ocultação de numerário em detrimento de credores, herdeiros e cônjuge meeiro); e (iv) má-fé a depender de análise caso a caso, para sopesar  o tempo de acumulação, a periodicidade, a situação econômica do participante etc.

 

Nessa mesma linha de entendimento é a lição de Ana Luiza Maia Nevares:

 

“A questão, de fato, é tormentosa, uma vez que o VGBL e o PGBL, embora tenham natureza securitária, constituem capital de titularidade do segurado, que o administra da maneira que lhe convém, podendo sacá-lo a qualquer tempo. Enquanto tal capital não resta convertido em renda periódica, a previdência privada é um investimento como outro qualquer, razão pela qual não só devem ser tributados, como também devem ser contabilizados para fim de colação ou de partilha decorrente do regime de bens. Realmente, de outra maneira, seria fácil burlar a legítima, bastando que o autor da herança aplicasse todos os seus recursos financeiros em um VGBL, por exemplo, destinando-o a apenas um dos herdeiros necessários em caso de falecimento, ou mesmo burlar o regime de bens, na hipótese em que um cônjuge aplicasse os recursos do casal em investimento como o ora mencionado, nomeando um terceiro como beneficiado.” (NEVARES, Ana Luiza Maia. Perspectivas para o planejamento sucessório in Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões, Belo Horizonte, n. 18, nov./dez. 2016, p. 19/20).”

Este também foi o entendimento da 3ª Turma do STJ no seguinte precedente:

 

“CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO SUCESSÓRIO. AÇÃO DE INVENTÁRIO E PARTILHA. COMORIÊNCIA ENTRE CÔNJUGES E DESCENDENTES. COLAÇÃO AO INVENTÁRIO DE VALOR EM PLANO DE PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR PRIVADA ABERTA. NECESSIDADE. REGIME MARCADO PELA LIBERDADE DO INVESTIDOR. CONTRIBUIÇÃO, DEPÓSITOS, APORTES E RESGATES FLEXÍVEIS. NATUREZA JURÍDICA MULTIFACETADA. SEGURO PREVIDENCIÁRIO. INVESTIMENTO OU APLICAÇÃO FINANCEIRA. DESSEMELHANÇAS ENTRE OS PLANOS DE PREVIDÊNCIA PRIVADA ABERTA E FECHADA, ESTE ÚLTIMO INSUSCETÍVEL DE PARTILHA. NATUREZA SECURITÁRIA E PREVIDENCIÁRIA DOS PLANOS PRIVADOS ABERTOS VERIFICADA APÓS O RECEBIMENTO DOS VALORES ACUMULADOS, FUTURAMENTE E EM PRESTAÇÕES, COMO COMPLEMENTAÇÃO DE RENDA. NATUREZA JURÍDICA DE INVESTIMENTO E APLICAÇÃO FINANCEIRA ANTES DA CONVERSÃO EM RENDA E PENSIONAMENTO AO TITULAR. BEM PERTENCENTE À MEAÇÃO DA CÔNJUGE IGUALMENTE FALECIDA QUE DEVE SER OBJETO DE PARTILHA COM SEUS HERDEIROS ASCENDENTES. 1- Recurso especial interposto em 13/02/2017 e atribuído à Relatora em 02/03/2018. 2- O propósito recursal consiste em definir se deve a inventariante colacionar o valor existente em previdência complementar privada aberta na modalidade PGBL ao inventário do falecido, especialmente na hipótese em que houve comoriência entre o autor da herança, a seu cônjuge e os seus filhos, figurando como herdeiros apenas os ascendentes do casal. 3- Os planos de previdência privada aberta, operados por seguradoras autorizadas pela SUSEP, podem ser objeto de contratação por qualquer pessoa física e jurídica, tratando-se de regime de capitalização no qual cabe ao investidor, com amplíssima liberdade e flexibilidade, deliberar sobre os valores de contribuição, depósitos adicionais, resgates antecipados ou parceladamente até o fim da vida, razão pela qual a sua natureza jurídica ora se assemelha a um seguro previdenciário adicional, ora se assemelha a um investimento ou aplicação financeira. 4- Considerando que os planos de previdência privada aberta, de que são exemplos o VGBL e o PGBL, não apresentam os mesmos entraves de natureza financeira e atuarial que são verificados nos planos de previdência fechada, a eles não se aplicam os óbices à partilha por ocasião da dissolução do vínculo conjugal ou da sucessão, apontados em precedente da 3ª Turma desta Corte (REsp 1.477.937/MG). 5- Embora, de acordo com a SUSEP, o PGBL seja um plano de previdência complementar aberta com cobertura por sobrevivência e o VGBL seja um plano de seguro de pessoa com cobertura por sobrevivência, a natureza securitária e previdenciária complementar desses contratos é marcante no momento em que o investidor passa a receber, a partir de determinada data futura e em prestações periódicas, os valores que acumulou ao longo da vida, como forma de complementação do valor recebido da previdência pública e com o propósito de manter um determinado padrão de vida. 6- Todavia, no período que antecede a percepção dos valores, ou seja, durante as contribuições e formação do patrimônio, com múltiplas possibilidades de depósitos, de aportes diferenciados e de retiradas, inclusive antecipadas, a natureza preponderante do contrato de previdência complementar aberta é de investimento, razão pela qual o valor existente em plano de previdência complementar aberta, antes de sua conversão em renda e pensionamento ao titular, possui natureza de aplicação e investimento, devendo ser objeto de partilha por ocasião da dissolução do vínculo conjugal ou da sucessão por não estar abrangido pela regra do art. 1.659, VII, do CC/2002. 7- Na hipótese, tendo havido a comoriência entre o autor da herança, seu cônjuge e os descendentes, não havendo que se falar, pois, em sucessão entre eles, devem ser chamados à sucessão os seus respectivos herdeiros ascendentes, razão pela qual, sendo induvidosa a conclusão de que o valor existente em previdência complementar privada aberta de titularidade do autor da herança compunha a meação do cônjuge igualmente falecido, a colação do respectivo valor ao inventário é indispensável. 8- Recurso especial conhecido e desprovido. (REsp n. 1.726.577/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 14/9/2021, DJe de 1/10/2021)”.

 

E nessa mesma linha há diversos julgados das 3ª e 4ª Turmas do STJ, (REsp 1.880.056/SE, REsp 1.698.774/RS, REsp 1.726.577/SP, AgInt no AREsp 921.715/SP, REsp 1.593.026/SP e AgInt no AREsp 1813193/SP).

 

Por outro lado, as 1ª e 2ª Turmas do STJ, por várias vezes (AgInt no AREsp 1702870/RS, AgInt no AREsp 1847351/RS, REsp 1963482/RS, REsp 1961488/RS, REsp 1961488/RS), concluíram que a natureza jurídica dos referidos planos seria previdenciária ou securitária, ou seja, que não devem integrar o inventário para fins de herança.

 

4. Conclusão:

 

Assim sendo, diante das questões acima colocadas e das decisões citadas, podemos concluir que a depender da forma como for instituído, os valores aportados em planos de previdência privada aberta, antes de sua conversão em renda e pensionamento ao titular, poderão ser vistos como investimento e, com isso, em caso de falecimento do titular, ser objeto de inventário e partilha, bem como recolhimento do imposto causa mortis.

 

Portanto, é importante ter cautela quando instituições financeiras e seguradoras oferecerem seus produtos como ferramenta de “planejamento sucessório”, tais como os próprios planos de previdência (VGBL/PGBL) alegando ser vantagem que evitaria o recolhimento de imposto causa mortis, já que em caso de óbito do titular, e a depender das especificidades do caso concreto, a administração tributária poderá instaurar um processo administrativo para averiguar a operação e exigir o pagamento do ITCMD, fazendo com que os valores aportados integrem o inventário como herança e sejam objeto da partilha.

 

Marcelo Barretto Ferreira da Silva Filho e Aline Hitomi Kawakami Yamaguchi

 

[1] AgInt no AREsp 1.794.943/RS