RETROATIVIDADE DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE A COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL.
Coisa julgada é a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso (art. 502, CPC/15). Através dela, impede-se que se renove discussão sobre a relação de direito material já decidida entre as mesmas partes.
Através da coisa julgada, portanto, consolida-se a segurança jurídica, ao garantir ao jurisdicionado que o pronunciamento judicial se torne definitivo, eliminando-se, assim, as angústias e incertezas nas relações jurídicas.
A coisa julgada inconstitucional é representada pela sentença judicial transitada em julgado, cujos fundamentos jurídicos são declarados inconstitucionais por decisão superveniente do Supremo Tribunal Federal.
O artigo 475-L, inciso II e parágrafo 1º do CPC/1973, já previa a inexigibilidade do título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidos pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.
A interpretação deste dispositivo rendia acalorados debates por parte dos juristas e doutrinadores, se a interpretação do Supremo teria aplicação imediata às situações jurídicas já constituídas e decididas por sentença transitada em julgado ou se haveria a necessidade de ajuizamento da ação rescisória para desconstituir o título executivo judicial.
Desde aquela época, o posicionamento do STF quanto à relativização da coisa julgada não era unânime[1]. Os Ministros Carlos Ayres Britto, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski se manifestavam no sentido de que a declaração de inconstitucionalidade dos fundamentos jurídicos da decisão opera efeitos imediatos e ex tunc sobre a decisão e seus efeitos. Já os Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio e Luiz Fux defendiam a impossibilidade de relativização da coisa julgada.
Segundo eles, a coisa julgada não teria compromisso nem com a justiça, nem com a verdade, mas com a pacificação, estabilidade e segurança jurídica. Desta forma, defendiam que sentença judicial transitada em julgado somente poderia ser desconstituída mediante ação rescisória.
Esta questão foi pacificada no julgamento do recurso extraordinário RE 730.462/SP, onde o plenário do STF decidiu em 28/05/2015, que a decisão do Supremo que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de norma, não produz automática reforma ou rescisão de decisões anteriores transitadas em julgado, sendo indispensável o ajuizamento de ação rescisória[2].
Logo, a sentença judicial transitada em julgado, cujos fundamentos jurídicos fossem declarados inconstitucionais por decisão superveniente do STF, somente poderia ser desconstituída se ainda estivesse em curso o prazo de dois anos para o ajuizamento da ação rescisória previsto no art. 476 do CPC/73. Esgotado esse prazo, os efeitos da sentença judicial transitada em julgado não poderiam sofrer qualquer restrição de eficácia.
O CPC/2015 repetiu o artigo 475-L, inciso II e seu parágrafo 1º, no artigo 525, parágrafo 12. Além disso, introduziu os parágrafos 13, 14 e 15, que assim dispõem:
“§ 13. No caso do § 12, os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal poderão ser modulados no tempo, em atenção à segurança jurídica.
§ 14. A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no § 12 deve ser anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda.
§ 15. Se a decisão referida no § 12 for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.”
As novas disposições legais reacenderam entre juristas e doutrinadores os debates acerca da relativização da coisa julgada material, em razão do novo marco para a contagem dos dois anos para ajuizamento da ação rescisória fundada em declaração superveniente de inconstitucionalidade pelo STF.
Nos termos do parágrafo 15 do artigo 525 do CPC/15, esse prazo passou a ser contado do trânsito em julgado da própria decisão do STF e não mais do trânsito em julgado da decisão rescindenda. Com isso, a Lei passou a autorizar a retroatividade da decisão do STF às situações anteriores, relativizando a coisa julgada material.
Para os defensores da relativização, a inconstitucionalidade é o mais grave vício de que padece o ato jurídico, de modo que ele é insanável. Desta forma, ela não é e nem pode ser em nenhuma hipótese convalidado, nem mesmo pelo trânsito em julgado de sentença contrária à Constituição. Ou seja, seu fundamento primordial reside no princípio da supremacia da Constituição, legitimado principalmente por sua aptidão de afirmar o princípio da legalidade, moralidade e igualdade de todos os cidadãos perante a Lei.
São adeptos desta corrente José Augusto Delgado, Humberto Theodoro Junior, Alexandre de Freitas Câmara, Teresa Arruda Alvim Wambier e Cândido Rangel Dinamarco, que assim escreveu sobre o tema:
“Onde quer que se tenha uma decisão aberrante de valores, princípios, garantias ou normas superiores, ali ter-se-ão efeitos juridicamente impossíveis e, portanto, não incidirá a autoridade da coisa julgada material – porque, como sempre, não se concebe imunizar efeitos cuja efetivação agrida a ordem jurídico-constitucional.”[3]
Já os autores contrários à relativização entendem que a coisa julgada representa realização do princípio da segurança jurídica, como forma de estabilização das relações e pacificação social.
E em sendo a segurança jurídica elemento essencial do Estado Democrático de Direito, não é possível admitir a relativização da coisa julgada como instrumento de afastar injustiça[4]. Nesse sentido militam José Carlos Barbosa Moreira, Ovídio Baptista da Silva, Luiz Guilherme Marinoni, Leonardo Grecco e Freddie Didier Jr, dentre outros.
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, citados por Moreira (2017, p. 14)[5] propõem interpretação alternativa para o parágrafo 15 do artigo 525 do CPC/2015. Segundo os consagrados autores, a possibilidade de rescisão da decisão transitada em julgado considerada inconstitucional pelo STF, somente de aplicaria àquelas sentenças que ainda estivessem dentro do prazo de dois anos para sua rescisão.
Para todos esses autores, o risco de haver sentença injusta ou inconstitucional é menos grave que o risco de se instaurar insegurança geral com a possibilidade de rescisão a qualquer tempo de decisões transitadas em julgado.
Não obstante os debates travados na doutrina sobre o tema e sua importância, entendemos que ao introduzir o parágrafo 15 ao artigo 525 do CPC, o legislador se filiou à corrente favorável à impossibilidade de convalidação da inconstitucionalidade, ainda que sob o pressuposto de consagração do princípio da segurança jurídica.
Isto porque a norma do parágrafo 15 do art. 525 do CPC é clara: o termo inicial da ação rescisória é de 2 anos, contados do trânsito em julgado da posterior decisão do STF. Ou seja, a intenção do legislador se coaduna com o entendimento de que a coisa julgada inconstitucional é nula e não pode sobreviver no mundo após o reconhecimento de sua inconstitucionalidade.
Em outras palavras, o espírito da norma foi justamente afastar do mundo todos os efeitos da inconstitucionalidade, pois, a supremacia da Constituição não permite eternizar injustiças a pretexto de evitar eternização de incertezas.
Acreditamos que esse entendimento é corroborado pelo artigo 27, da Lei 9.868/99:
“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”
Ou seja, é competência exclusiva do STF restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade de uma norma, ou definir o momento a partir de quando a declaração terá eficácia. Se não o fizer, é porque, sopesando seus efeitos, entendeu que sua eficácia retroage a todos os atos judiciais praticados com base na norma inconstitucional.
Não à toa, o próprio artigo 525 traz essa disposição expressamente no parágrafo 13:
“§ 13. No caso do § 12, os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal poderão ser modulados no tempo, em atenção à segurança jurídica.”
Desta forma, se a Suprema Corte entende necessário limitar no tempo os efeitos da declaração de inconstitucionalidade da norma que deu origem ao título executivo, ela o faz mediante a modulação de seus efeitos.
Se, por outro lado, deixa de fazê-lo, é porque entendeu que a gravidade de se permitir a manutenção de uma violação frontal à Constituição Federal representa ela mesma violação à segurança jurídica dos indivíduos, por violar outros preceitos fundamentais.
Desta forma, não tendo ocorrido a modulação dos efeitos da decisão do STF, ela se aplica a todas as situações forjadas com base na norma considerada inconstitucional.
Não obstante, a constitucionalidade da regra prevista no parágrafo 15 do art. 525 do CPC está sendo discutida no STF. Contudo, até que sobrevenha decisão da Corte, concluímos que é possível a ação rescisória contra sentenças que tenham transitado em julgado, desde que ela seja interposta no prazo de até 2 anos do trânsito em julgado da decisão do STF, que tenha declarado inconstitucional a norma jurídica tomada como seu fundamento.
Flavia de Faria Horta Pluchino
[1] CRISTO, Alessandro. Parte do STF admite relativização da coisa julgada. Disponível em https://www.conjur.com.br/2011-mar-29/tres-ministros-stf-admitem-relativizacao-coisa-julgada Acesso em 19/09/2023.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. (Plenário). Disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=307679468&ext=.pdf. Acesso em 15/09/2023.
[3] DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada. In Nova era do processo civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 254.
[4] MARINONI, Luiz Guilherme. A intangibilidade da coisa julgada diante da decisão de inconstitucionalidade: impugnação, rescisória e modulação de efeitos. Revista de Processo. vol. 251. Ano 41. p. 275-307. São Paulo: Ed. RT, jan.2016.
[5] MOREIRA, William Grégori Edl. Ação Rescisória baseada na Inconstitucionalidade Superveniente no NCPC. In < https://bibliodigital.unijui.edu.br/items/c7358c3f-0910-42d0-97b7-6396a60355de> Acesso em 13/06/2023.