OS EFEITOS DA SENTENÇA DE INTERDIÇÃO.
Nos termos do art. 1º do Código Civil, toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil, desde seu nascimento com vida até a sua morte (arts. 2º e 6º do CC).
A capacidade civil é a regra, não obstante, conforme preceituam os arts. 3º e 4º do CC, algumas pessoas sejam absolutamente[1] ou relativamente[2] incapazes de exercer pessoalmente os atos (ou certos atos) da vida civil, e somente podem praticá-los quando assistidas ou representadas.
A incapacidade decorrente da menoridade cessa com a maioridade ou com a emancipação (art. 5º do CC), hipóteses em que o indivíduo se torna plenamente capaz. A incapacidade, porém, pode acometer pessoas maiores se forem dependentes químicos, tiverem comprometimento que os impeça de exprimir sua vontade ou se considerados como pródigos[3].
Neste artigo, abordaremos os efeitos da sentença que determina a interdição de pessoa incapaz, principalmente em relação aos negócios jurídicos firmados anteriormente à decretação da interdição.
Para tanto, é necessário adentrar a discussão que versa sobre a natureza da sentença de interdição, se ela seria declaratória ou constitutiva, e quanto aos seus efeitos, se seriam ex tunc ou ex nunc.
Parte da doutrina defende que a sentença de interdição teria natureza declaratória[4]. Isso porque a sentença não criaria o estado de incapacidade do indivíduo, mas apenas declararia juridicamente uma situação de fato preexistente. A sentença visaria debelar crise de certeza; o requerido pode ser considerado incapaz?
Desta forma, a sentença de interdição seria mero título hábil a atestar a incapacidade do indivíduo e seus efeitos seriam ex tunc, ou seja, os atos e negócios jurídicos praticados pelo incapaz anteriormente à prolação da sentença seriam considerados nulos.
É necessário, porém, fazer ressalva às afirmações no sentido de que a sentença de natureza declaratória não “altera” a realidade jurídica, mas apenas serve para certificar uma situação existente. A questão é mais sútil e pode ser compreendida através da distinção entre o elemento declaratório e efeito declaratório da sentença. A esse respeito, o saudoso Prof. José Ignacio Botelho de Mesquita admoestava que se isso fosse verdadeiro, as sentenças declaratórias seriam inúteis. O pressuposto da ação declaratória é precisamente o fato de que algo se altere com pronunciamento da declaração. Se dela não adviesse alteração nenhuma no mundo das relações jurídicas, ela seria absolutamente desnecessária e a ação seria inadmissível[5].
Por outro lado, a corrente majoritária na doutrina e jurisprudência versa no sentido de que a sentença de interdição tem natureza constitutiva[6], pois, embora ela não crie o estado de incapacidade, ela institui uma nova situação jurídica ao sujeito interditado: a curatela.
Assim, a sentença de interdição produz efeitos ex nunc, salvo expresso pronunciamento judicial em sentido contrário. Em outras palavras, os atos pretéritos à decretação judicial da interdição são passíveis de serem declarados nulos, todavia não são alcançados de forma automática pela interdição. É necessário comprovar em ação própria que a incapacidade existia à época da celebração do ato ou negócio jurídico que se pretende anular.
Nesse sentido, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.694.984/MS de relatoria do eminente Ministro Luis Felipe Salomão:
“RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL. CITAÇÃO EM NOME DE INCAPAZ. INCAPACIDADE DECLARADA POSTERIORMENTE. NULIDADE NÃO RECONHECIDA. INTERVENÇÃO DO MP. NULIDADE. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DO PREJUÍZO. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. LEI N. 13.146/2015. DISSOCIAÇÃO ENTRE TRANSTORNO MENTAL E INCAPACIDADE.
- A sentença de interdição tem natureza constitutiva, caracterizada pelo fato de que ela não cria a incapacidade, mas sim, situação jurídica nova para o incapaz, diferente daquela em que, até então, se encontrava.
- Segundo o entendimento desta Corte Superior, a sentença de interdição, salvo pronunciamento judicial expresso em sentido contrário, opera efeitos ex nunc. Precedentes.
- Quando já existente a incapacidade, os atos praticados anteriormente à sentença constitutiva de interdição até poderão ser reconhecidos nulos, porém não como efeito automático da sentença, devendo, para tanto, ser proposta ação específica de anulação do ato jurídico, com demonstração de que a incapacidade já existia ao tempo de sua realização do ato a ser anulado.
- […]
- Recurso especial a que se nega provimento.”
O acórdão faz menção aos ensinamentos de Barbosa Moreira[7], ao qual fazemos alusão:
“Corretissimamente se dirá, portanto, que a incapacidade não é gerada, mas apenas reconhecida pela sentença; ou seja, que aquela preexiste a esta. Daí não se infere, todavia, que a decretação da interdição seja ato meramente declaratório. Interditar uma pessoa não se reduz, em absoluto, a proclamar-lhe, pura e simplesmente, a incapacidade. Consiste, sim, em submetê-la a peculiar regime jurídico, caracterizado pela sujeição à curatela. “Decretada a interdição, fica o interdito sujeito à curatela”, reza a parte inicial do art. 453 do CC. “Decretando a interdição”, ecoa o art. 1.183, parágrafo único, do CPC, “o juiz nomeará curador ao interdito”. Nisso – e não no mero reconhecimento da incapacidade – é que reside o quid específico da sentença.
Vistas as coisas por tal prisma, não se pode deixar de perceber no ato feição constitutiva. Se ele não cria a incapacidade, cria de certo, para o incapaz, situação jurídica nova, diferente daquela em que, até então, se encontrava. Considerar a sentença como “declaratória do estado anterior”, é fruto de um desvio de perspectiva: olha-se para a incapacidade como se fosse o objeto do pronunciamento judicial, quando ela é apenas o fundamento da decisão. O que na realidade importa comparar com o “estado anterior” é a sujeição do interditando à curatela – e, aí, a inovação claramente ressalta.”
Barbosa Moreira exemplifica que não há diferença entre a sentença que julga procedente o pedido de anulação de casamento com fulcro na incapacidade de um dos nubentes (cuja natureza é incontestavelmente constitutiva) e a sentença que decreta a interdição, pois ambas as sentenças têm como fundamento o estado anterior de incapacidade do sujeito, e ambas modificam a sua situação jurídica.
Desse modo, não há que se argumentar que a sentença de interdição teria efeitos retroativos, pois em regra as sentenças de natureza constitutiva produzem somente efeitos ex nunc.
Especificamente quanto à sentença de interdição, o seu efeito próprio “é absolutamente insuscetível de projetar-se para o passado”[8]..
O instituto jurídico da curatela, por sua vez, visa proteger os direitos e interesses das pessoas maiores que, seja por dependência química, comprometimento psíquico que os impeça de exprimir sua vontade ou do estado de prodigalidade, não são plenamente aptas a administrar seu patrimônio ou a praticar os atos da vida civil (art. 749 do CPC), sendo nomeado curador para atuar nos interesses do interdito (art. 755 do CPC).
Logo, os atos e negócios jurídicos praticados pessoalmente pelo interditado na constância da curadoria, sem a assistência ou representação de seu curador, serão nulos independente de prova.
Em contrapartida, como já mencionado, os atos e negócios jurídicos praticados pelo incapaz antes da interdição poderão ser objeto de ação de anulação de ato jurídico, a ser ajuizada dentro do prazo decadencial previsto no art. 179 do Código Civil, findo o qual sem a propositura da referida ação autônoma, estará convalidado o negócio jurídico.
Para o reconhecimento de nulidade de atos jurídicos praticados anteriormente à sentença de interdição, é necessária a prova inequívoca da incapacidade do sujeito à época em que o ato foi firmado, bem como prova do prejuízo acarretado ao incapaz.
Além disso, o entendimento dominante na doutrina e jurisprudência é de que se deve aferir se a outra parte contratante sabia ou possuía meios de saber sobre a incapacidade.
Para Silvio Rodrigues[9], os atos anteriores à interdição poderão ser anulados, se a causa da interdição existia notoriamente à época em que tais fatos foram praticados; se o outro contratante tinha conhecimento da incapacidade, se podia, com alguma diligência, apurar a condição de incapaz, ou, ainda, se da própria estrutura do negócio resultava que seu proponente não estava em seu juízo perfeito.
Nesse sentido, no julgamento do REsp nº 2051555/MG, de relatoria da ministra Maria Isabel Gallotti, a Quarta Turma afirmou o entendimento de que para a decretação da nulidade de negócio jurídico pretérito à interdição judicial, são necessários três requisitos, a saber: (i) prova inexorável da incapacidade à época da celebração do negócio; (ii) prova do prejuízo experimentado pelo incapaz em decorrência do negócio; e (iii) má-fé do outro contratante.
“APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO ANULATÓRIA- CANCELAMENTO DE SEGURO DE VIDA – ALEGAÇÃO DE INCAPACIDADE DO AGENTE – INCAPACIDADE NÃO COMPROVADA QUANDO DA REALIZAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO – APÓLICE MANTIDA. O ato praticado pelo incapaz ainda não interditado poderá ser invalidado se concorrerem três requisitos: 1) a incapacidade de entendimento; 2) o prejuízo ao incapaz; 3) má-fé da outra parte. Ausente os requisitos, o negócio jurídico deve ser mantido, ainda mais quando não demonstrado que o adimplemento do contrato de seguro de vida gera grave prejuízo à subsistência e à situação financeira da curatelada, pois é certo que o interesse econômico e o bem-estar da incapaz devem ser resguardados em primeiro lugar.”
A necessidade da verificação de tais requisitos visa proteger os interesses e o patrimônio do interditado, bem como resguardar os direitos dos terceiros de boa-fé, mas principalmente garantir a segurança jurídica das relações[10].
Análise de caso concreto:
Ao julgar o AgInt no AREsp 1849142, o ministro relator Marco Buzzi reafirmou a imprescindibilidade de prova da incapacidade, prejuízo do incapaz e má-fé do terceiro.
No caso julgado, a ação de anulação de negócio jurídico foi proposta pelo autor, alegando ausência de capacidade para prática dos atos da vida civil ao tempo da celebração do compromisso de compra e venda de imóvel. Em segunda instância o recurso teve provimento negado pelo E. TJSP, e a decisão foi mantida pelo C. STJ.
Como fundamentou o ministro, não foi comprovado que o autor era incapaz, absoluta ou relativamente, ou mesmo que a assinatura do contrato decorreu de vício de consentimento, sendo que, o reconhecimento da incapacidade do autor com relação a atos praticados em momento anterior à interdição dependeria de robusta demonstração a esse respeito.
Ademais, in casu, não havia indícios de que o réu teria agido de má-fé, ou sequer prova de que o compromisso de compra e venda foi firmado por preço muito inferior ao de mercado.
Conforme afirmou o ministro Marco Buzzi:
“Por considerar que a anulação de qualquer ato praticado por incapaz em período anterior ao do registro da interdição deve ser tomado com extrema cautela, exigindo robusto acervo probatório no sentido de que a incapacidade era evidente e possível de ser constatada por terceiros, opinamos pela improcedência do pedido, em homenagem à segurança jurídica e a presunção de boa-fé nas relações cíveis.”
Rodrigo Elian Sanchez e Vanessa Barbosa Freitas
[1] Art. 3o do CC: “São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos”.
[2] Art. 4º do CC: “São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:
I – Os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II – Os ébrios habituais e os viciados em tóxico;
III – Aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;
IV – Os pródigos.”
[3] Para o Dicionário Jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, o pródigo é “o indivíduo perdulário, que esbanja ou dissipa o próprio patrimônio, e que, incorrendo em interdição, é privado de, sem curador, praticar atos que não sejam de mera administração”. É de se destacar, que a prodigalidade não é doença mental, em outras palavras, “não é entidade nosológica com direito a nome e classificação. É, isto sim, sintoma, manifestação patológica, a qual pode estar presente em várias entidades clínicas características”. PALOMBA, Guido Arturo. Tratado de Psiquiatria Forense Civil e Penal. 1. ed. São Paulo: Atheneu, 2003. p. 158.
[4] Neste sentido, GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: volume 6 – Direito de família. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
[5] BOTELHO DE MESQUITA, José Ignacio. A coisa julgada. 1ª Ed., Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 9.
[6] As sentenças constitutivas produzem o efeito de criar, modificar ou extinguir uma relação jurídica. Essas sentenças, como todas as demais, contêm uma declaração de certeza de relação ou situação jurídica preexistente, mas a isso, como consequência, acrescentam um quid, consistente na criação de nova relação, ou modificação ou extinção da mesma relação ou situação jurídica. TONIN, Maurício Morais. Eficácia Executiva das Sentenças Declaratória. Tese de mestrado. USP. 2012 p. 44
[7] Moreira, José Carlos Barbosa. Eficácia da sentença de interdição por alienação mental. Revista de Processo. São Paulo, no 43, ano 11, jul./set.1986.
[8] Ibidem, p. 86.
[9] Rodrigues, Silvio. Direito Civil – Parte Geral, vol. 1, 34ª edição, São Paulo, Saraiva, 2003, p. 45-47.
[10] A necessidade de certeza é imanente à própria ideia de direito. Nas palavras de Humberto Ávila: “Segurança jurídica é um valor constitutivo do Direito, visto que sem um mínimo de certeza, de eficácia e de ausência de arbitrariedade não se pode, a rigor, falar de um sistema jurídico. A função primeira do Direito é asseguradora”. ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 354 e 355