O REVIGORAMENTO DA HIPOTECA E O APARENTE CONFLITO ENTRE O ART. 9º DO MARCO LEGAL DAS GARANTIAS E O ART. 1.484 DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: A Lei nº 14.711/2023, o Marco Legal das Garantias, modernizou a hipoteca ao permitir sua execução extrajudicial. Neste artigo, analisamos seus principais impactos e o possível conflito com o Código Civil.
É tendência, há mais de década, a chamada desjudicialização, pela qual questões que anteriormente necessitavam tramitar exclusivamente perante o poder judiciário, são transferidas para outras esferas de resolução, como as câmaras de mediação e arbitragem, órgãos administrativos e outros mecanismos extrajudiciais.
Este movimento busca reduzir a sobrecarga dos tribunais, promover uma resolução mais ágil e eficiente dos conflitos e aumentar a satisfação dos jurisdicionados com o sistema de Justiça[1]. Exemplo marcante desta tendência foi a entrada em vigor da Lei n.º 11.441/2007, que permitiu a realização de divórcio e inventários extrajudicialmente; da Lei n.º 13.465/2017 que permitiu a usucapião extrajudicialmente, ou a recente Lei n.º 14.382/2022 que autorizou a adjudicação extrajudicialmente no serviço de registro de imóveis da situação do imóvel[2].
Seguindo esta tendência, a Lei n.º 14.711/2023, também conhecida como Marco Legal das Garantias, dentre outras inovações, veio permitir a execução extrajudicial dos créditos garantidos por hipoteca.
Historicamente, a execução das garantias imobiliárias em nosso país dependia de ação judicial. Em 1997, pela Lei Federal 9.514, o ordenamento jurídico passou a prever a alienação fiduciária em garantia imobiliária (AFI) e o procedimento extrajudicial para a sua excussão.
O procedimento simplificado, aliado ao diminuto espaço relegado para adoção de defesas e meio protelatórios pelos devedores, tornou a alienação fiduciária a modalidade de garantia mais utilizada no mercado imobiliário[3].
Diante deste cenário, a hipoteca acabou perdendo parte de sua atratividade.
Porém, com a entrada em vigor do Marco Legal das Garantias, espera-se que a hipoteca venha a retomar parte de sua relevância, como instrumento assegurador do crédito imobiliário.
Ao regular a execução extrajudicial dos créditos garantidos por hipoteca, o Marco Legal das Garantias buscou aproximá-lo ao regime adotado na AFI. Transcrevemos abaixo o art. 9º do referido diploma legal:
“Art. 9º Os créditos garantidos por hipoteca poderão ser executados extrajudicialmente na forma prevista neste artigo.
§ 1º Vencida e não paga a dívida hipotecária, no todo ou em parte, o devedor e, se for o caso, o terceiro hipotecante ou seus representantes legais ou procuradores regularmente constituídos serão intimados pessoalmente, a requerimento do credor ou do seu cessionário, pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel hipotecado, para purgação da mora no prazo de 15 (quinze) dias, observado o disposto no art. 26 da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, no que couber.
§ 2º A não purgação da mora no prazo estabelecido no § 1º deste artigo autoriza o início do procedimento de excussão extrajudicial da garantia hipotecária por meio de leilão público, e o fato será previamente averbado na matrícula do imóvel, a partir do pedido formulado pelo credor, nos 15 (quinze) dias seguintes ao término do prazo estabelecido para a purgação da mora.
[…]
§ 5º Na hipótese de o lance oferecido no primeiro leilão público não ser igual ou superior ao valor do imóvel estabelecido no contrato para fins de excussão ou ao valor de avaliação realizada pelo órgão público competente para cálculo do imposto sobre transmissão inter vivos, o que for maior, o segundo leilão será realizado nos 15 (quinze) dias seguintes.”
Uma primeira dúvida que surgiu com a publicação da nova lei é se o §5º do art. 9º teria revogado o art. 1.484 do Código Civil.
O art. 1.484 do Código Civil estabelece ser lícito que o devedor e o credor, façam constar nas escrituras o valor entre si ajustado dos imóveis hipotecados, o qual, devidamente atualizado, será a base para as arrematações, adjudicações e remições, dispensada a avaliação.
Por outro lado, o §5º do art. 9º do Marco Legal das Garantias, estabelece que o imóvel apenas poderá ser arrematado em primeiro leilão se o valor do lance for igual ou superior ao valor do imóvel estabelecido no contrato para fins de excussão ou ao valor de avaliação realizada pelo órgão público competente para o cálculo do imposto sobre transmissão inter vivos, o que for maior. Ou seja, se as partes tiverem estabelecido na escritura de hipoteca[4] o valor de avaliação do bem para fins de arrematação e se este valor for inferior ao utilizado pelo município como base de cálculo do ITBI, é este último que será utilizado como valor mínimo para o primeiro leilão.
O conflito normativo, porém, é aparente. O Código Civil apenas regulava as arrematações e adjudicações judiciais. Por outro lado, o art. 9º do Marco Geral das Garantias regula unicamente o procedimento de execução extrajudicial dos créditos garantidos por hipoteca.
Resta claro que o âmbito de incidência das normas é diverso. Se o credor deseja realizar a excussão extrajudicial estará sujeito a regra do Marco Legal das Garantias, que é, aliás, similar a adotada para excussão da garantia fiduciária (§ único, art. 24 da Lei nº 9.514/1997).
Por outro lado, se o credor adotar a excussão judicial, incidirá a regra contida no art. 1.484 do Código Civil. Deverá, portanto, à luz do caso concreto, avaliar qual será o “caminho” mais vantajoso.
Com as recentes alterações, a excussão da garantia hipotecária poderá ser tão rápida e simples como a garantida por AFI.
Não obstante, na comparação entre os dois institutos [Hipoteca versus AFI] uma vantagem continua a pesar em favor da AFI, já que os créditos garantidos por alienação fiduciária não sofrem os efeitos da recuperação judicial do devedor, por expressa disposição legal [parágrafo 3º do artigo 49 da Lei 11.101/2005].
É também verdade que esta vantagem não terá implicação prática quando o devedor for pessoa física. Todavia, dentre as vantagens que a garantia hipotecária apresenta em relação a alienação fiduciária, inclui-se a possibilidade do imóvel hipotecado poder ser alienado [art. 1.475 do Código Civil], enquanto o imóvel alienado fiduciariamente não pode, em razão do devedor ter transferido ao credor a propriedade resolúvel e a posse indireta sobre o imóvel.
Como a hipoteca segue o imóvel [sequela] não importa quem venha a ser o proprietário do imóvel, ele continuará a garantir o crédito. É possível, porém, que no instrumento de constituição da hipoteca seja previsto que o crédito hipotecário terá vencimento antecipado, se o imóvel for alienado [§ único, art. 1.475 do Código Civil]. Ou seja, ocorrendo uma situação de liquidez, o crédito deverá ser quitado.
Sem entrar em maiores detalhes, já que a hipoteca é instituto riquíssimo e com várias nuances, é possível asseverar que as inovações trazidas pelo Marco Legal das Garantias “revigoraram” a hipoteca e podem impulsionar a sua utilização como instrumento de crédito imobiliário. É certo, também, que em certos cenários poderá ser mais adequada e vantajosa sua utilização em comparação à AFI.
Rodrigo Elian Sanchez
[1] A Meta nº 9 para o Poder Judiciário, expedida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e aprovada para os anos de 2020 e 2021, estabelece que os Tribunais devem “realizar ações de prevenção e desjudicialização de litígios.
[2] É importante ressaltar, que as leis que permitiram que estes procedimentos tramitem administrativamente perante cartórios de notas ou registro de imóveis, trouxeram requisitos e vedações, sendo que no caso de conflito entre as partes, o procedimento deverá ser dirimido exclusivamente pelo poder judiciário.
[3] O ESTADO DE SÃO PAULO. Hipoteca ou alienação fiduciária? Entenda qual garantia domina o financiamento imobiliário. disponível em: https://einvestidor.estadao.com.br/educacao-financeira/hipoteca-alienacao-fiduciaria-garantia-financiamento-imobiliario/. Acesso em 22.março.2025.
[4] É importante ressaltar que a hipoteca pode ser constituída por instrumento particular [prescindindo de escritura pública], se o valor do imóvel, nos termos do art. 108 do Código Civil, não for superior a 30salários-mínimoss ou independentemente do valor do bem quando o financiamento for concedido no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação (SFH).