IMÓVEIS ENCRAVADOS E O DIREITO À PASSAGEM FORÇADA.

É muito comum na área imobiliária a ocorrência de imóveis encravados. Pela definição, o imóvel encravado é aquele que não tem acesso à via pública, senão por servidão de passagem através de outro imóvel, ou seja, a passagem forçada.

 

A melhor definição de passagem forçada, por sua vez, é dada por Hely Lopes Meirelles[1], que afirma que a “passagem forçada é restrição ao direito de propriedade, decorrente das relações de vizinhança. Não é servidão predial, cujos fundamentos e pressupostos são outros. A passagem forçada é uma imposição de solidariedade entre vizinhos e resulta de consideração de que não pode um prédio perder a sua finalidade e valor econômico, por falta de acesso à via pública, fonte ou porto, permanecendo confinado entre propriedades que o circundam, limítrofes ou não. Quando tal situação ocorre, permite a lei que o imóvel rural ou urbano, obtenha dos vizinhos o acesso necessário”.

 

Vale ainda destacar que o direito à passagem forçada é uma servidão legal e, portanto, não deve ser confundida com o direito real de servidão por diversas razões, dentre elas: a) as servidões legais decorrem de lei e o direito real de servidão decorre de acordo entre as partes ou de usucapião; b) por decorrerem da lei, as servidões legais não necessitam do registro imobiliário, ao passo que o direito real de servidão é constituído pelo registro imobiliário (salvo no caso de usucapião); c) as servidões legais geram restrições e direitos recíprocos entre vizinhos, ao passo que o direito real de servidão gera vantagem ao prédio dominante e restrições para o prédio serviente; d) as servidões legais são gerais e atendem ao interesse público de coexistência e pacificação das relações de vizinhança, ao passo que o direito real de servidão atende ao interesse e a conveniência das partes[2].

 

Em regra, a passagem forçada deve ser vista sempre como necessidade e não como conforto (por se tratar de restrição ao direito de propriedade, que não comporta interpretação analógica ou ampliativa), ou seja, não basta que o acesso à via pública seja mais longo, ou tenha obstáculos superáveis, para que se possa exigi-la do vizinho.

 

Contudo, uma corrente mais progressista, com decisões inclusive no C. Superior Tribunal de Justiça, entende que não há necessidade de o imóvel ser absolutamente encravado para ter o direito à passagem forçada:

 

“Civil. Direitos de vizinhança. Passagem forçada (art. 559 [do CC/1916]). Imóvel encravado. Numa era em que a técnica da engenharia dominou a natureza, a noção de imóvel encravado já não existe em termos absolutos e deve ser inspirada pela motivação do instituto da passagem forçada, que deita raízes na supremacia do interesse público; juridicamente, encravado é o imóvel cujo acesso por meios terrestres exige do respectivo proprietário despesas excessivas para que cumpra a função social sem inutilizar o terreno do vizinho, que em qualquer caso será indenizado pela só limitação do domínio. Recurso especial conhecido e provido em parte’ (STJ, REsp 316.336/MS, 3ª Turma, Rel. Min. Ari Pargendler, j. em 18/08/2005, DJ 19/09/2005, p.316).” (destacamos)

 

É nesse sentido mais progressista, o entendimento de Flávio Tartuce[3], a saber: “na esteira da melhor doutrina e jurisprudência, o conceito de imóvel encravado não deve ser visto de forma absoluta, sem qualquer flexibilidade. Nesse sentido, aprovou-se o Enunciado nº 88 do CJF/STJ, na I Jornada de Direito Civil (2004): ‘O direito de passagem forçada, previsto no art. 1.285 do CC, também é garantido nos casos em que o acesso à via pública for insuficiente ou inadequado, consideradas, as necessidades de exploração econômica‘.

 

O imóvel encravado e o direito à passagem forçada estão previstos no código civil brasileiro, especificamente no artigo 1.285 que preconiza que o dono do imóvel que não tiver acesso a via pública, pode, mediante pagamento de indenização, constranger o vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário.

 

Os parágrafos do referido artigo, esclarecem questões relevantes, a saber: (i) a passagem será através do vizinho cujo imóvel mais natural e facilmente se prestar; (ii) se ocorrer uma venda parcial do imóvel, de modo que uma das partes perca o acesso a via pública, o proprietário da outra deve tolerar a passagem; (iii) se, antes mesmo da venda parcial, existia uma passagem através de imóvel vizinho, ela será mantida, não estando o proprietário obrigado à, posteriormente, dar uma nova passagem.

 

Neste sentido, o proprietário de imóvel que não tiver qualquer acesso à via pública, seja por questões de desmembramento, seja por questões ambientais, tem o direito à passagem forçada, direito este que está calcado, como visto, na solidariedade, a qual “deve presidir as relações de vizinhança e a necessidade econômica de se aproveitar devidamente o prédio encravado. [Pois] o interesse social exige que se estabeleça passagem para que o imóvel não se torne improdutivo” (MONTEIRO, 2003, p. 141).

 

Importante destacar que para a instituição da passagem forçada, por ser uma servidão legal onerosa, deverá ser estabelecida a justa indenização a ser paga ao seu proprietário, cujo valor deverá ser estabelecido através de perícia técnica a ser realizada.

 

A indenização legal, prevista no caput do art. 1.285 do Código Civil existe, pois, na passagem forçada não há anuência do proprietário do imóvel serviente, que, em regra, tem direito a ser indenizado pela restrição de uso (computam-se no valor os danos emergentes, e lucros cessantes em razão da não utilização da faixa de passagem, inclusive eventual desvalorização do remanescente).

 

Logicamente, há casos em que não haverá qualquer restrição significativa ou desvalorização da propriedade do imóvel serviente (i.e. a prévia existência de uma via de acesso já utilizada para acesso do proprietário do imóvel serviente ou de outros imóveis vizinhos, ou, também, casos em que se comprovar a inexistência de ônus para manutenção da via de acesso) sendo que, nestes casos, não há que se falar em indenização pela passagem forçada.

 

Em conclusão, sempre que se verificar um imóvel encravado, há o direito à passagem forçada, mediante o pagamento de justa indenização, cujo valor e adequação serão analisados e aferidos, caso a caso.

 

Marcelo Barretto Ferreira da Silva Filho

 

[1] Direito de Construir, 4. Ed. São Paulo, RT, 1983, p. 58.

[2] Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. Claudio Luiz Bueno de Godoy. Coordenação Cesar Peluzzo. 14 ed. Barueri – SP. Manole 2020.

[3] Manual de direito civil: volume único. 7ª edição. Rio de Janeiro: Forense, págs. 1.069/1.071.