HERANÇA DIGITAL E DIREITO SUCESSÓRIO.

O desenvolvimento da tecnologia está cada vez mais intenso e presente na sociedade; vivemos a era da revolução digital, em que a forma de se comunicar, socializar, ter acesso às informações se alterou completamente; tendo fomentado importantes transformações, especialmente nos âmbitos do comportamento social, da economia, política e cultura.

 

Em um primeiro momento, para regulamentar essa nova realidade, em nosso país, em 23 de abril de 2014 foi sancionada a Lei nº 12.965, denominada Marco Civil da Internet, que prevê regulamentos básicos, princípios e garantias para o uso da internet no país. Contudo, o diploma legal nada estabeleceu em relação à possibilidade de o acervo e dados digitais poderem ou não compor uma herança.

 

Os bens digitais[1] incorpóreos, com ou não informações de caráter pessoal, podem ter ou não conteúdo econômico. Como exemplo dos bens digitais, podemos mencionar desde criptomoedas [bem com expressão econômica], poemas, textos, fotos de autoria da própria pessoa [estes com proteção dada pela Lei n. 9.610/1998], como vídeos, fotografias de terceiros, base de dados [contatos], que não tenham expressão econômica.

 

Ou seja, existem bens digitais que possuem características nítidas patrimoniais, tais como bibliotecas digitais, jogos online, moedas virtuais, e outros que não tenham nenhuma repercussão econômica, porém carregam o aspecto sentimental dos bens digitais. Como exemplo, podemos mencionar fotos que suscitem lembranças, as mensagens encaminhadas e/ou recebidas por e-mail e os recados inbox nas mídias sociais.

 

GRECO[2] aponta exemplos de bens virtuais valoráveis da seguinte forma:

 

“[…] já que ebooks, músicas baixáveis, fotos digitais, vídeos digitais, contas de redes sociais, assinaturas digitais, softwares baixáveis, aplicativos, nuvens digitais, jogos e cursos online, não raro, são bens onerosos que exigiram do seu titular na época movimentação financeira, superando o suposto entrave econômico, dado que o simples fato de não ser palpável não significa necessariamente que não foi custoso”.

 

Um dos acervos digitais mais conhecidos está na rede do Youtube, em que sua valoração está no ganho que o proprietário da página obtém conforme a quantidade de visualizações de seus vídeos. No caso, o proprietário da página se utiliza da plataforma do Youtube e acumula “seguidores” por meio do conteúdo que divulga; muitas vezes para influenciá-los a comprar um determinado produto ou serviço.

 

Outro exemplo disso é o trabalho do “digital influencer”, ou seja, usuário que influencia sua rede de seguidores através de posts, que podem ser compartilhados e comentados. Muitas empresas, inclusive, pagam para que esse usuário indique seus produtos/serviços, já que ele possui uma enorme quantidade de seguidores, que acompanham seus conteúdos diariamente. Desse modo, a página do influencer passa a ter valor no mercado virtual.

 

A partir de então, questiona-se acerca da possibilidade dos bens digitais se submeterem a sucessão.

 

De início, é necessária a conceituação de patrimônio para a compreensão do direito sucessório, ou seja, o direito de suceder os bens deixados pelo falecido.

 

Na definição de Clóvis Beviláqua[3], patrimônio é “o complexo das relações jurídicas de uma pessoa, que tiver valor econômico”.

 

Já a herança é o conjunto de direitos e obrigações deixados por uma pessoa, que se transmite, desde logo, aos herdeiros legítimos e os testamentários (art. 1.784 do Código Civil).

 

Nesse ínterim, pode-se dizer que a classificação da sucessão é dividida entre sucessão legítima e testamentária. A sucessão legítima é a que ocorre a transmissão da herança de acordo com a lei, isto é, quando o falecido não deixa testamento e é transmitida seguindo a ordem da vocação hereditária. A sucessão testamentária ocorre quando há declaração de última vontade do de cujus por meio de testamento.

 

O testamento, por sua vez, é um ato personalíssimo que só produz efeitos após a morte do testador, podendo ser revogado a qualquer tempo, e a lei não estipula que o testamento deve se limitar aos bens tangíveis ou com expressão econômica, sendo válidas à luz do art. 1.857, § 2º, do Código Civil, disposições testamentárias de caráter não patrimonial.

 

Assim, passadas as considerações acima e recapitulando a definição de bens digitais, este último engloba, portanto, os bens com valoração econômica e os sem valoração econômica. Logo, seguindo esse raciocínio, fica evidente a possibilidade da transmissão dos bens com valoração econômica para aos herdeiros ou legatários, como qualquer outro bem.

 

A controvérsia se baseia, contudo, em relação aos bens sem valoração econômica, mas que tenham apenas caráter sentimental, como fotos e mensagens de e-mail, que depende da existência de disposição de última vontade do falecido, e na falta deste, um respaldo legislativo – que atualmente não há.

 

Caso o falecido não tenha deixado testamento em que tenha se manifestado sobre sua herança digital, os bens digitais se transmitem aos herdeiros? Pela atual redação do Código Civil, entendemos que não.

 

Uma solução jurisprudencial para “atualizar” a legislação em razão da evolução tecnológica para incluir esses bens na sucessão hereditária pode trazer conflitos com o próprio direito de privacidade do de cujus.

 

Imaginemos que o falecido tenha perfil em rede social e/ou canal no Youtube que possui conteúdos particulares e que não deseje que seus herdeiros tenham acesso.

 

É de se destacar, que algumas das redes sociais disponibilizam formulários que possibilitam, ainda em vida, definir como a sua conta será gerenciada após a morte. Essa opção funciona como uma disposição de vontade, porém, a maioria desconhece essa ferramenta.

 

A plataforma do Facebook possui sua própria autorregulamentação e oferece duas opções por meio do aplicativo “If I die” (se eu morrer, em tradução livre). Assim, o usuário escolhe entre manter a conta ativa ou excluída. A opção de manter a conta ativa apenas transforma o perfil do usuário em um memorial. Já a segunda opção autoriza que um representante exclua a conta mediante a comprovação da morte do usuário. Logo, é necessário a indicação de um “herdeiro digital”, a quem será conferido poderes para tanto.

 

O Twitter, conforme regulamento do site, disponibiliza aos familiares baixar todos os tweets públicos e solicitar a exclusão do perfil. Já o Instagram age do mesmo modo que a rede Facebook.

 

No caso do Google, caso o usuário preencha os termos e formulários, pode ser avisado a respeito da morte e se a conta estava programada, a empresa poderá exclui-la automaticamente. No entanto, se essa não for a opção escolhida, o usuário poderá optar por quem irá gerenciar a conta em seu nome e o conteúdo que será compartilhado.

 

Ocorre que, muito embora tais plataformas tentem se basear nas vontades pessoais dos usuários, não há no ordenamento jurídico brasileiro norma específica que regulamente a sucessão de bens digitais. E sem regulamentação jurídica, há um grande obstáculo sobre a destinação dos ativos digitais de pessoas falecidas, ou até mesmo incapacitadas, fazendo com que as demandas ao judiciário aumentem a respeito do tema.

 

Existem quatro projetos de lei, em trâmite perante o Congresso Nacional, para normatizar o assunto; sendo que o mais recente é o PL 3.050/20, cuja finalidade é alterar a redação do art. 1788 do Código Civil, com o acréscimo de um parágrafo único: “Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de qualidade patrimonial contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança.”

 

Ele tem como base um projeto anterior (PL 7.742/2017) que opta pela exclusão das contas online do usuário falecido como a primeira opção em caso de ausência de testamento, com exceção, apenas, dos familiares que poderiam pleitear o acesso a tais contas. Essas medidas viriam expressas com a inclusão de um novo dispositivo de lei ao Marco Civil da Internet. Tal projeto, porém, ainda se encontra na fila de pautas da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática.

 

Tramita também o PL 8.562/2017 e sua proposta traz o texto de um dos primeiros projetos de lei (PL 4.847/2012[4]) a tramitar sobre o assunto, que pretende incluir três novos artigos ao Código Civil de forma a inserir o conceito da herança digital:

 

“Art. 1.797-A. A herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido, tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual, nas condições seguintes:

I – senhas;

II – redes sociais;

III – contas da Internet;

IV – qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido.

 

Art. 1.797 – B. Se o falecido, tendo capacidade para testar, não o tiver feito, a herança será transmitida aos herdeiros legítimos.

 

Art. 1.797 C. Cabe ao herdeiro:

I – definir o destino das contas do falecido;

  1. a) transformá-las em memorial, deixando o acesso restrito a

amigos confirmados e mantendo apenas o conteúdo principal ou;

  1. b) apagar todos os dados do usuário ou;
  2. c) remover a conta do antigo usuário.”

 

O PL 4.099/2012, por sua vez, trata a herança digital no âmbito da sucessão legítima. A ideia é transferir aos herdeiros a liberdade quanto ao seu destino. No caso, seria inserido um parágrafo único ao art. 1.788 do Código Civil com a seguinte redação: “Art. 1.788, parágrafo único. Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais do autor da herança.”[5].

 

É certo que tais discussões e possíveis regulamentações da herança digital trazem relevantes críticas entre a privacidade do de cujus e a atribuição dos bens digitais aos herdeiros, devendo o debate jurídico a respeito deste assunto ser ampliado e aprofundado.

 

De um lado, há a preocupação envolvendo a intimidade e a vida privada da pessoa, no sentido de que “a herança digital deve ser enterrada junto com o falecido”, e, do outro, de criar um caminho possível de atribuição da herança digital aos herdeiros legítimos, naquilo que for possível.

 

Em todo o caso, entendemos ser necessário que o eventual projeto de lei sobre herança digital dialogue com a Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018 (“LGPD”), que dispõe sobre proteção de dados pessoais, para termos harmonia legislativa.

 

Outro caminho, seria fazer constar a impossibilidade de inclusão na herança dos ativos digitais que não possuem valoração econômica (e-mails, perfis em rede social etc.) sem que haja manifestação prévia do falecido, mas, em contrapartida, os ativos digitais que possuem valoração econômica (música, e-book, moeda digital etc.) serem passíveis de inclusão na sucessão hereditária, nos moldes do que já está estabelecido pelo Código Civil vigente.

 

Esse tema provavelmente, será abordado pela comissão de juristas que está a cargo da revisão do Código Civil e que foi instalada em 24 de agosto de 2022 pelo Senado Federal.

 

Até que ocorra a revisão legislativa, recomendamos que as pessoas que têm preocupação com a transmissão de seus bens digitais, deixem testamento a respeito.

 

Aline Hitomi Kawakami Yamaguchi

 

[1] LACERDA, Bruno Torquato Zampier. Bens Digitais. Indaiatuba: Editora Foco Jurídico, p. 74, 2017.

[2] GRECO, Pedro Teixeira Pinos. Sucessão de Bens Digitais: Quem tem medo do novo? São Paulo: Revista Síntese Direito de Família. n. 113. maio 2018, p 10.

[3] BEVILAQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. p. 209. Campinas: RED Livros, 1999.

[4] BRASIL. Projeto de Lei nº 4.847, de 2012. Acrescenta o Capítulo II A e os art. 1.797A a 1.797C à Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que “institui o Código Civil”. Disponível em: http://www.camara.gov.br Acesso em: 17 de janeiro de 2023.

[5] BRASIL. Projeto de Lei nº 4.099, de 2012. Altera o art. 1788 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que “institui o Código Civil”. Disponível em: http://www.camara.gov.br Acesso em: 17 de janeiro de 2023.