ESTATUTO DA TERRA

O Estatuto da Terra, a principal lei sobre direito agrário no Brasil, completou no final do ano passado 59 anos de vigência. Promulgada em 30 de novembro de 1964, a Lei nº 4.504/64 foi elaborada com o objetivo de promover o desenvolvimento da reforma agrária e da política agrícola.

 

O Estatuto da Terra (e seu decreto regulamentador 59.566/66) trouxe conjunto de definições legais, normas concernentes ao uso, ocupação e posse da propriedade rural, regulamentou os contratos agrários, criou órgãos responsáveis pela execução das medidas a serem implementadas (sucedidos pelo INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), e regulamentou o Imposto Territorial Rural (ITR).

 

Embora se possa afirmar que o Direito Agrário ainda está em fase de desenvolvimento (em razão da escassa legislação, jurisprudência e doutrinas sobre o tema), é certo que o Estatuto da Terra pode ser considerando o “Código Agrário”.

 

Isso porque, o Código Civil de 2002 não incorporou os dispositivos reguladores dos contratos agrários existentes no Código Civil de 1916 nem trouxe novas disposições, tendo relegado para o Estatuto da Terra a responsabilidade de reger essas relações jurídicas.

 

O Estatuto da Terra traz normas de caráter imperativo e obrigatório, sendo que a natureza cogente de suas normas se torna ainda mais evidente ao analisar os artigos que regulamentam os contratos agrários[1].

 

Conforme dispõe o art. 13º, da Lei nº 4.947/66 no que concerne aos contratos agrários, o acordo de vontade das partes e o objeto podem ser regidos pelo Direito Civil, contudo, todo o mais deverá ser regulamentado pelo Estatuto da Terra.  Nesse sentido, as normas do Estatuto da Terra são irrenunciáveis, e caso sejam constatadas convenções contratuais que contrariem as disposições do Estatuto, o contrato será considerado nulo.

 

Em outras palavras, as partes contratantes estão impedidas de renunciar quaisquer direitos trazidos pela Lei nº 4.504, como indenização de benfeitorias, prazos mínimos de cumprimento dos contratos, direito de preferência na aquisição do imóvel, percentual para remuneração do arrendamento ou participação dos frutos da parceria, entre outros.

 

Esse forte dirigismo contratual decorre justamente do objetivo maior do Estatuto: o de promoção da política agrícola, que visa assegurar o acesso à terra, o bem-estar e a justa relação de trabalho entre parceiro-outorgante e parceiro-outorgado ou arrendador e arrendatário, a conservação dos recursos naturais, níveis satisfatórios de produtividade.

 

Tanto é assim, que os contratos agrários estão regrados no Capítulo IV do Estatuto da Terra, que trata do “Do Uso ou da Posse Temporária da Terra”. Isso porque, o Estatuto possibilitou formas de posse ou uso temporário das terras através de contratos expressos ou tácitos[2], entre o proprietário da terra rural e aqueles que pretendem nela desenvolver atividade agrícola ou pecuária, sob forma de arrendamento rural, de parceria agrícola, pecuária, agroindustrial e extrativa (art. 92).

 

O Estatuto da Terra tratou particularmente os contratos de arrendamento e parceria rural (classificados como contratos típicos, ou seja, contratos que possuem regulamentação expressa em lei), e estendeu as mesmas regras aplicáveis à arrendatários e parceiros às demais modalidades de uso ou posse temporária da terra (os chamados contratos atípicos, ou seja, contratos não definidos em lei, como o contrato de pastoreio ou de invernagem, comodato rural, etc.), conforme preceitua o art. 39, do Decreto nº 59.566/66.

 

Quanto ao arrendamento rural, o Decreto Regulamentador nº 59.566/66, em seu art. 3º, assim define:

 

“Art. 3º Arrendamento rural é o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de imóvel rural, parte ou partes do mesmo, incluindo, ou não, outros bens, benfeitorias e ou facilidades, com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa ou mista, mediante, certa retribuição ou aluguel, observados os limites percentuais da Lei.”

 

No parágrafo 2º do mesmo artigo, conceitua “Arrendador” como aquele que cede o imóvel rural ou o aluga, e “Arrendatário” como sendo a pessoa que o recebe o imóvel rural ou toma por aluguel.

 

Já o parágrafo 3º trata do subarrendamento, contrato acessório pelo qual o arrendatário transfere a outrem, no todo ou em parte, os direitos e obrigações decorrentes do contrato de arrendamento, com prévio e expresso consentimento do arrendador (art. 31 do Decreto 59.566/66 e art. 95, VI da Lei nº 4.504/64).

 

Nesse sentido, destaca-se que, na ausência do consentimento do proprietário é vedado o subarrendamento, e a desobediência a essa regra, constitui ofensa contratual e sua rescisão (art. 31 do Decreto 59.566/66).

 

Quanto ao prazo de vigência do arrendamento rural, eles terminarão sempre depois de ultimada a colheita. Sendo que no caso de retardamento da colheita por motivo de força maior, considerar-se-ão esses prazos prorrogados nas mesmas condições, até sua ultimação (art. 95, inc. I do Estatuto da Terra).

 

O prazo de vigência será mínimo de “3 anos nos casos de arrendamento em que ocorra atividade de exploração de lavoura temporária e ou de pecuária de pequeno e médio porte; ou em todos os casos de parceria”; e mínimo de “5 anos nos casos de arrendamento em que ocorra atividade de exploração de lavoura permanente e ou de pecuária de grande porte para cria, recria, engorda ou extração de matérias primas de origem animal”. É ainda previsto prazo mínimo “de 7 anos nos casos em que ocorra atividade de exploração florestal” (art. 13, inc. II do Decreto 59.566/66).

 

Quanto aos contratos de arrendamento por tempo indeterminado, o art. 95, inc. II do Estatuto da Terra impõe um prazo mínimo de 3 anos. Independente do contrato ter sido convencionado por prazo determinado ou indeterminado, é assegurado ao arrendatário a prorrogação do prazo conclusão da colheita de uma safra, ou complementação de engorda do gado, por exemplo.

 

Com relação à renovação do contrato, o art. 95, IV e V, do Estatuto da Terra, e o art. 22, §§1º e 2º, do Decreto 59.566/66 estabelecem que, caso haja proposta de terceiros, o arrendatário terá preferência, devendo o proprietário notificar extrajudicialmente o arrendatário sobre as novas propostas em até 6 meses antes do vencimento do contrato.

 

Por outro lado, o arrendamento não será renovado se, no prazo de 6 meses que antecedem o fim do contrato, o proprietário, por notificação extrajudicial, declarar a intenção de retomada do imóvel para sua exploração ou através de seus herdeiros.

 

Na ausência desta notificação se considera renovado automaticamente o contrato de arrendamento[3], desde que o arrendatário não esteja em descumprimento contratual[4].

 

O segundo contrato disciplinado pelo Estatuto da Terra é o de parceria rural, que, conforme redação do art. 4º do Decreto 59.566/66, pode ser definido da seguinte forma:

 

“Art. 4º Parceria rural é o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso especifico de imóvel rural, de parte ou partes do mesmo, incluindo, ou não, benfeitorias, outros bens e ou facilidades, com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa vegetal ou mista; e ou lhe entrega animais para cria, recria, invernagem, engorda ou extração de matérias primas de origem animal, mediante partilha de riscos do caso fortuito e da força maior do empreendimento rural, e dos frutos, produtos ou lucros havidos nas proporções que estipularem, observados os limites percentuais da lei (artigo 96, VI do Estatuto da Terra).”

 

Neste contato, o “parceiro-outorgante” é o cedente (proprietário ou não do bem rural) que entrega o imóvel para a exploração através da parceria, e o “parceiro-outorgado”, a pessoa que o recebe, para lá desenvolver atividade rural.

 

Nos termos do art. 5º do Decreto Regulamentador a parceria pode ser: a) agrícola; b) pecuária, quando o objetivo da cessão forem animais para cria, recria, invernagem ou engorda; c) agroindustrial, quando o objeto da sessão for o uso do imóvel rural ou maquinaria e implementos, com o objetivo de ser exercida atividade de transformação de produto agrícola, pecuário ou florestal; d) extrativa, quando o objeto da cessão for o uso de imóvel rural, de parte ou partes do mesmo, e ou animais de qualquer espécie, com o objetivo de ser exercida atividade extrativa de produto agrícola, animal ou florestal; e, e) mista, quando o objeto da cessão abranger mais de uma das modalidades de parceria.

 

Quanto ao prazo, assim como ocorre nos contratos de arrendamento rural, para qualquer modalidade de parceria rural o prazo mínimo é três anos. Ademais, também é assegurado ao parceiro o direito à prorrogação do prazo até a conclusão da colheita pendente.

 

As principais diferenças entre os contratos de arrendamento e parceria rural é a forma de remuneração. Enquanto no arrendamento, o imóvel rural é cedido a terceiro, mediante retribuição certa e invariável, na parceria rural a remuneração pelo uso do imóvel é variável, pois há divisão dos lucros e dos prejuízos resultantes da exploração do imóvel rural; tanto o parceiro-outorgante quanto o outorgado arcam com os riscos que poderão ocorrer da exploração da atividade, sendo que a lei fixa os percentuais limites do proprietário na participação dos frutos (art. 96, inc. VI do Estatuto da Terra).

 

Outra diferença importante é a forma de tributação destes contratos. Os rendimentos provenientes do contrato de arrendamento são considerados como aluguel, de modo que o arrendador está sujeito à tributação com base na tabela progressiva do imposto de renda pessoa física, podendo chegar à alíquota de até 27,5%.

 

Em contrapartida, ao arrendatário, e aos parceiros rurais, aplica-se as reduções tributárias previstas na Lei 8.023/90, que traz vantagens ao produtor rural, dentre elas o cálculo diferenciado do imposto de renda para a tributação da receita da atividade rural.

 

Essa distinção na tributação ocorre porque no contrato de arrendamento os valores recebidos pelo arrendador não são considerados como frutos da atividade rural. Já na parceria rural a remuneração pelo uso do imóvel advém justamente dos frutos da atividade rural.

 

O Estatuto da Terra é diploma legal muito extenso, sendo que os apontamentos acima trazidos são pontuais. Apesar da sua idade, conhecer este diploma legal continua a ser fundamental, para quem atua no agronegócio e pretende contratar com segurança jurídica.

 

Vanessa Freitas e Rodrigo Elian Sanchez

 

 

[1] O art. 2º, do Decreto nº 59.566/66 evidencia a limitação à autonomia da vontade das partes contratantes: “Art. 2º. Todos os contratos agrários reger-se-ão pelas normas do presente Regulamento, as quais serão de obrigatória aplicação em todo o território nacional e irrenunciáveis os direitos e vantagens nelas instituídos. Parágrafo único. Qualquer estipulação contratual que contrarie as normas estabelecidas neste artigo, será nula de pleno direito e de nenhum efeito”.

[2] Conforme entendimento de parte da doutrina, o legislador se referiu equivocadamente a “forma expressa ou tácita”, quando, na verdade, queria dizer “forma escrita ou verbal”.

[3] STJ, REsp n. 1.277.085/AL, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 27/9/2016, DJe de 7/10/2016.

[4] EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO RENOVATÓRIA. ARRENDAMENTO RURAL. DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL. ATRASOS NO PAGAMENTO. NOTIFICAÇÃO. RENOVAÇÃO AUTOMÁTICA DA AVENÇA. NÃO CONFIGURAÇÃO. (TJGO, Apelação (CPC) 5365145- 35.2018.8.09.0017, Rel. Des(a). LEOBINO VALENTE CHAVES, 2ª Câmara Cível, julgado em 28/07/2020, DJe de 28/07/2020)