E-CLIPPING – JUNHO DE 2011E-CLIPPING – JUNHO DE 2011

Prezados Clientes e Parceiros,

Segue abaixo, notícia especial, ligada às possibilidades inusitadas que a medicina proporciona na questão da reprodução humana e do da falta de tratamento específico para muitas destas novas questões.

DIREITO DE FAMÍLIA

VALOR ECONÔMICO – EU& FIM DE SEMANA

Reprodução humana traz desafios inusitados à Justiça

Aos 39 anos, a professora curitibana Kátia Adriana Lenerneier prepara-se para a chegada da primeira filha, Luísa Roberta. O nome da menina é uma homenagem ao pai, Roberto Jefferson Niels, morto dez meses antes da gravidez de Kátia. A gestação, que se tornou conhecida no país, ganhou as páginas de jornais e revistas por ter sido autorizada pelo Judiciário. Mesmo depois de perder o marido, vítima de câncer, Kátia prosseguiu com o plano do casal de ter filhos. Decidiu fazer uma fertilização com o material genético deixado por Roberto, congelado em uma clínica de reprodução da capital paranaense, antes de ele iniciar o tratamento quimioterápico. “Quando o Beto estava hospitalizado, prometi a ele que realizaria nosso sonho.” A vontade de Kátia, porém, esbarrou no contrato assinado com a clínica. No documento não havia autorização do marido para que o sêmen pudesse ser utilizado pela mulher, se ele viesse a morrer antes da fecundação.

Kátia precisou recorrer ao Judiciário para que a clínica fornecesse o material. As advogadas Dayana Sandri Dallabrida e Adriana Szmulik, do Escritório Vernalha Guimarães & Pereira Advogados Associados, propuseram uma ação denominada de “obrigação de fazer” para forçar a clínica a liberar o material congelado para que a fertilização fosse realizada. O laboratório entendeu que seria necessária autorização expressa de Roberto. Três dias após o pedido da professora, uma decisão do juiz Alexandre Gomes Gonçalves autorizou o procedimento. Um dos argumentos das advogadas foi o de que sua cliente, na época com 38 anos, já teria sinais de envelhecimento ovular. “Ela não poderia aguardar por muito tempo longos debates na Justiça”, afirma Dayana.

O caso de Kátia exemplifica uma das situações relacionadas ao tema que o Judiciário deve ainda ser chamado a decidir. O Brasil não possui uma lei para tratar dos episódios que podem surgir a partir da chamada reprodução assistida. E, por isso, questões como herança de filhos nascidos de material genético de pai morto, por exemplo, ou a destinação de embriões excedentes de uma inseminação continuam sem uma resposta legal. “A escala de situações geradas hoje pela tecnologia é muito alta e as leis simplesmente não conseguem acompanhá-las”, avalia o filósofo e professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Tércio Sampaio Ferraz Jr, segundo o qual a medicina estaria entre essas situações.

Autora do livro “Estatuto da Reprodução Assistida”, a professora universitária e doutora em direito civil pela USP Ana Cláudia Scalquette sugere, por meio de sua obra, que o Brasil aprove um código sobre o tema. Hoje, segundo ela, como não há lei, os juízes são obrigados a decidir. E, por essa razão, há uma inversão na lógica do sistema brasileiro, que se baseia nas leis para julgar (“civil law”), ao contrário do americano e britânico, por exemplo. Nesses países o que se considera nos julgamentos são os usos e costumes da sociedade. E, uma vez julgado, aquele entendimento do Judiciário servirá de parâmetro para as demais ações. “No caso da bioética e do direito de família, o que vemos é primeiro os julgamentos ocorrerem e posteriormente os projetos de lei surgirem para regulamentar essas situações”, diz Ana Cláudia.

No Rio Grande do Sul, o advogado e professor da PUC-RS Rolf Madaleno foi à Justiça pedir que uma cliente pudesse registar como filho a criança gerada no útero da irmã. O embrião foi formado a partir da doação anônima de óvulos e pelos espermatozoides do marido da cliente. A situação envolveu três mulheres distintas. A doadora, a que emprestou o útero e aquela que tinha o desejo de ser mãe. Segundo ele, não há previsão legal para o caso. Por isso, o hospital onde a criança nasceu negou à sua cliente a Declaração de Nascido Vivo (DNV), necessária para o registro em cartório. “Alegamos no Judiciário que a presunção de que mãe é aquela que dá à luz, está superada.” Nesse caso, a história teve um final feliz e a certidão de nascimento foi concedida. E se a mulher que emprestou o útero decidisse não entregar a criança ou a doadora reivindicasse a maternidade do bebê? Para essas perguntas ainda não há respostas.

Ana Cláudia entende que o “empréstimo de barriga” pode ocorrer, mas a cessão deve ser homologada no Judiciário. Isso significaria redigir um documento com todas as regras relacionadas ao empréstimo e submetê-lo à aprovação da Justiça. A professora defende que um instrumento previamente aprovado por um juiz, com os possíveis pontos de conflito, ofereceria maior segurança aos envolvidos.

Hoje a única regra que existe em relação à gestação de substituição é uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) publicada em janeiro, que serve de orientação aos médicos. Pela norma – que trata dos padrões éticos para a reprodução assistida -, as doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da futura mãe, num parentesco de até segundo grau. A orientação por si, porém, não soluciona problemas legais que possam surgir com a cessão. A legislação brasileira não veda o empréstimo de útero, mas ganhos financeiros com a medida não são permitidos. A Constituição Federal proíbe a venda de órgãos e a barriga de aluguel poderia ser interpretada como a comercialização de um órgão.

Essa mesma norma do CFM autorizou, no início do ano, o uso de material genético, em reprodução assistida, de doador que já tenha morrido – desde que permitida antes da morte. Na época em que a professora Katia Adriana Lenerneier decidiu utilizar o sêmen do marido, ainda não existia a resolução do Conselho. “Agora as clínicas já estão preparadas para essas situações”, afirma a advogada da professora, Dayana Sandri Dallabrida.

Há pouco mais de um ano, o advogado e presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Rodrigo da Cunha Pereira, foi chamado para uma tarefa com a qual nunca havia se deparado em seus quase 30 anos de carreira. Foi procurado por duas mulheres que vivem em união estável e dois homens na mesma situação. Os casais, que têm relações de amizade, queriam ter um filho, mas não de doadores anônimos. Por isso, decidiram utilizar seu próprio material genético: um dos homens doaria o sêmen e uma das mulheres doaria o óvulo e geraria a criança por meio de uma inseminação artificial. Antes de realizarem o procedimento, buscaram o advogado para que ele fizesse um contrato de geração de filho, com a previsão da guarda compartilhada pelos casais. A inseminação foi realizada e a criança registrada em nome dos pais biológicos. Mas a intenção dos casais é que conste na certidão de nascimento da criança os nomes dos dois homens e das duas mulheres, como pais. Segundo o advogado, seus clientes aguardarão mais um pouco antes de proporem uma ação no Judiciário com esse objetivo, pois hoje não existe qualquer precedente judicial nesse sentido. “Essa é a vida como ela é. Gostemos ou não essas coisas estão ocorrendo e o direito de família precisa evoluir”, diz.

O psicanalista e professor de psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Sócrates Nolasco avalia que a técnica da reprodução assistida muda a matriz da sociedade, ou seja, aquela família formada por um pai e uma mãe e cuja estrutura se repete há milhares de anos. “Cria-se um novo conceito de natureza humana, que influenciará diretamente os filhos.” Os sujeitos envolvidos nessas mudanças, pondera Nolasco, estão muito mais predispostos a angústias, que surgirão a partir do momento em que eles começarem a questionar-se de onde vieram. Essa seria a pergunta-chave do ser humano. A reprodução assistida estaria mexendo na questão da origem do homem. “O ranking de complexidades é imenso”, afirma.

Outra questão que continua em aberto para muitos casais é a destinação dos embriões excedentes – aqueles não utilizados na inseminação. No Brasil, há pelo menos 21.254 embriões congelados, conforme dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Mas o número pode ser bem maior, pois nem todos os 130 Bancos de Células e Tecidos Germinativos (órgãos vinculados aos estabelecimentos de saúde que prestam informações à Anvisa) existentes no país estão cadastrados na Anvisa. “Hoje há clínicas que têm contêineres de embriões congelados”, afirma o médico e conselheiro do Conselho Federal de Medicina, José Hiran da Silva Gallo, ao acrescentar que o tema é controverso no mundo inteiro

A explicação para tão grande número de estocagem está na própria Lei de Biossegurança. A norma, que foi amplamente discutida no Supremo Tribunal Federal (STF) e julgada constitucional em 2008, proíbe o descarte e limita o uso em pesquisas e terapias. Essa opção está reservada apenas para os embriões considerados inviáveis ou aqueles congelados há três anos ou mais, na data da publicação da Lei de Biossegurança, de 28 de março de 2005. Para os demais casos não há previsão legal e, por isso, inúmeros casais mantêm seus embriões congelados, pois não se enquadram na situação de pesquisa e não podem, simplesmente, descartá-los.

Por esse dilema passa um casal de Curitiba, que prefere não se identificar. Há dois anos, eles realizaram uma fertilização in vitro, ao custo total de R$ 15 mil. Bem-sucedido, o procedimento gerou dois meninos. Os gêmeos estão agora com dois anos e o casal pensa em ter mais um filho. No entanto, mesmo que venha mais esse bebê, sobrarão no laboratório sete embriões. O pai das crianças diz não ter ideia do que fazer com eles e até quando terá que mantê-los – ele paga uma anuidade pelo congelamento. “Se existisse lei, facilitaria-nos a vida, pois os embriões estão congelados por não termos opção”, afirma. “Também não pensamos em doá-los para outros casais, pois não queremos nossos filhos criados por outras pessoas.”

A gerente-geral de Sangue, Outros Tecidos, Células e Órgãos da Anvisa, Geni Neuman, afirma que, apesar de essa não ser a seara da agência – que apenas faz o controle e fiscalização do sistema -, a existência de uma lei sobre reprodução assistida e planejamento familiar facilitaria a atuação do órgão. “Temos dificuldade de regulamentar porque nos falta uma lei maior sobre isso.”

Outra questão que, na opinião de juristas, merece estar prevista em lei é a doação anônima de óvulos e sêmen. A professora Ana Cláudia Scalquette, cuja tese de doutorado foi sobre reprodução assistida, defende a criação de um sistema que permita aos filhos biológicos de doadores conhecerem sua origem genética na vida adulta. A medida seria também uma forma de evitar o casamento entre irmãos ou pessoas muito próximas. Para a professora, esse cadastro nacional deveria ser interligado ao registro de nascimentos, via cartórios. Mas a abertura dos dados só poderia ocorrer mediante autorização judicial e em situações de perigo de morte (necessidade de transplante, por exemplo) ou se o conhecimento da origem fosse necessário para o equilíbrio psicológico daquela pessoa.

O advogado Rolf Madaleno entende que o filho, fruto de doação anônima, poderá, na Justiça, pedir que o laboratório responsável pelo procedimento identifique a mãe ou pai biológico. “Conhecer a origem é um direito de qualquer cidadão.” No entanto, ele interpreta que essa identificação não geraria direitos à pensão ou à herança, por exemplo. Isso não ocorreria porque quem recebeu a doação de gametas, aceitou-a em sigilo. Mas nada impediria, porém, que o filho propusesse uma ação judicial para reivindicar esses supostos direitos.

A mesma discussão sobre sucessão se coloca para filhos concebidos com material genético de pai já morto. O filho nascido anos após a morte do pai teria direito à herança como os demais? Para a questão, as normas brasileiras ainda não têm uma resposta. A única previsão do Código Civil é aquele nascido da reprodução assistida será filho por presunção. Mas não há qualquer definição sobre quais direitos lhe seriam atribuídos. Ana Cláudia entende que os filhos nascidos nessa situação têm direito à herança, em respeito à própria Constituição Federal, que estabelece o direito à igualdade, dignidade e à herança. No entanto, como avalia, a lei deveria estabelecer limites para que esses direitos não representassem insegurança para os demais herdeiros. Para a advogada, o ideal seria estabelecer-se um prazo de três anos seguintes à morte do pai – período que segue a Lei de Biossegurança. Se a criança nascesse nesse período, teria direito à sucessão. Durante esse tempo, seria feito uma partilha provisória com os demais herdeiros.

Há poucas regras no Brasil

As poucas orientações existentes no Brasil sobre reprodução assistida estão em normas do Conselho Federal de Medicina (CFM). Essas regras, porém, não têm força de lei e regulamentam apenas as relações éticas entre médicos e pacientes. A última resolução publicada pela entidade foi em janeiro (Resolução n 1.957) e modificou norma de 18 anos atrás que tratava do tema. “Essas normas são sobre a ética e, se transgredidas, podem resultar na suspensão ou cassação do profissional”, afirma o médico ginecologista, conselheiro do CFM e relator da resolução, José Hiran da Silva Gallo.

A resolução inovou ao estabelecer o número máximo de quatro embriões que podem ser implantados nas pacientes – o que varia conforme a faixa etária. A medida teve por objetivo resguardar a saúde da mulher submetida ao tratamento. De acordo com o médico, uma multigravidez oferece riscos e, quanto mais alta a faixa etária da paciente, maior é a probabilidade de problemas. A destinação dos embriões excedentário será tema de uma discussão no CFM no segundo semestre. O conselheiro afirma que esse não é um problema apenas do Brasil, mas de inúmeros países. Dos debates, poderá surgir uma proposta de anteprojeto de lei sobre a questão.

A norma também trouxe como novidade a permissão para que os laboratórios aceitem realizar a reprodução assistida em casais homoafetivos. Assim como os procedimentos em pacientes cujo material a ser utilizado seja de doador que já morreu (post mortem). Pela resolução, o uso do material é permitido, desde que autorizado previamente e por escrito pelo doador. Dentre outros pontos, o CFM orienta os médicos para o fato de que as doações de gametas ou embriões nunca poderão ter fins comerciais, assim como a obrigação de manter-se o sigilo da identidade tanto de doadores, quanto receptores do material.

A resolução também trata da cessão do útero. A regra é que a doadora pertença à família, num parentesco até o segundo grau. Os demais casos estão sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina. A gravidez de substituição não pode ter fins comerciais, ou seja, a doadora do útero não pode cobrar por isso.

Zínia Baeta – De São PauloPrezados Clientes e Parceiros,

Segue abaixo, notícia especial, ligada às possibilidades inusitadas que a medicina proporciona na questão da reprodução humana e do da falta de tratamento específico para muitas destas novas questões.

 

DIREITO DE FAMÍLIA

VALOR ECONÔMICO – EU& FIM DE SEMANA

Reprodução humana traz desafios inusitados à Justiça

 

Aos 39 anos, a professora curitibana Kátia Adriana Lenerneier prepara-se para a chegada da primeira filha, Luísa Roberta. O nome da menina é uma homenagem ao pai, Roberto Jefferson Niels, morto dez meses antes da gravidez de Kátia. A gestação, que se tornou conhecida no país, ganhou as páginas de jornais e revistas por ter sido autorizada pelo Judiciário. Mesmo depois de perder o marido, vítima de câncer, Kátia prosseguiu com o plano do casal de ter filhos. Decidiu fazer uma fertilização com o material genético deixado por Roberto, congelado em uma clínica de reprodução da capital paranaense, antes de ele iniciar o tratamento quimioterápico. “Quando o Beto estava hospitalizado, prometi a ele que realizaria nosso sonho.” A vontade de Kátia, porém, esbarrou no contrato assinado com a clínica. No documento não havia autorização do marido para que o sêmen pudesse ser utilizado pela mulher, se ele viesse a morrer antes da fecundação.

Kátia precisou recorrer ao Judiciário para que a clínica fornecesse o material. As advogadas Dayana Sandri Dallabrida e Adriana Szmulik, do Escritório Vernalha Guimarães & Pereira Advogados Associados, propuseram uma ação denominada de “obrigação de fazer” para forçar a clínica a liberar o material congelado para que a fertilização fosse realizada. O laboratório entendeu que seria necessária autorização expressa de Roberto. Três dias após o pedido da professora, uma decisão do juiz Alexandre Gomes Gonçalves autorizou o procedimento. Um dos argumentos das advogadas foi o de que sua cliente, na época com 38 anos, já teria sinais de envelhecimento ovular. “Ela não poderia aguardar por muito tempo longos debates na Justiça”, afirma Dayana.

O caso de Kátia exemplifica uma das situações relacionadas ao tema que o Judiciário deve ainda ser chamado a decidir. O Brasil não possui uma lei para tratar dos episódios que podem surgir a partir da chamada reprodução assistida. E, por isso, questões como herança de filhos nascidos de material genético de pai morto, por exemplo, ou a destinação de embriões excedentes de uma inseminação continuam sem uma resposta legal. “A escala de situações geradas hoje pela tecnologia é muito alta e as leis simplesmente não conseguem acompanhá-las”, avalia o filósofo e professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Tércio Sampaio Ferraz Jr, segundo o qual a medicina estaria entre essas situações.

Autora do livro “Estatuto da Reprodução Assistida”, a professora universitária e doutora em direito civil pela USP Ana Cláudia Scalquette sugere, por meio de sua obra, que o Brasil aprove um código sobre o tema. Hoje, segundo ela, como não há lei, os juízes são obrigados a decidir. E, por essa razão, há uma inversão na lógica do sistema brasileiro, que se baseia nas leis para julgar (“civil law”), ao contrário do americano e britânico, por exemplo. Nesses países o que se considera nos julgamentos são os usos e costumes da sociedade. E, uma vez julgado, aquele entendimento do Judiciário servirá de parâmetro para as demais ações. “No caso da bioética e do direito de família, o que vemos é primeiro os julgamentos ocorrerem e posteriormente os projetos de lei surgirem para regulamentar essas situações”, diz Ana Cláudia.

No Rio Grande do Sul, o advogado e professor da PUC-RS Rolf Madaleno foi à Justiça pedir que uma cliente pudesse registar como filho a criança gerada no útero da irmã. O embrião foi formado a partir da doação anônima de óvulos e pelos espermatozoides do marido da cliente. A situação envolveu três mulheres distintas. A doadora, a que emprestou o útero e aquela que tinha o desejo de ser mãe. Segundo ele, não há previsão legal para o caso. Por isso, o hospital onde a criança nasceu negou à sua cliente a Declaração de Nascido Vivo (DNV), necessária para o registro em cartório. “Alegamos no Judiciário que a presunção de que mãe é aquela que dá à luz, está superada.” Nesse caso, a história teve um final feliz e a certidão de nascimento foi concedida. E se a mulher que emprestou o útero decidisse não entregar a criança ou a doadora reivindicasse a maternidade do bebê? Para essas perguntas ainda não há respostas.

Ana Cláudia entende que o “empréstimo de barriga” pode ocorrer, mas a cessão deve ser homologada no Judiciário. Isso significaria redigir um documento com todas as regras relacionadas ao empréstimo e submetê-lo à aprovação da Justiça. A professora defende que um instrumento previamente aprovado por um juiz, com os possíveis pontos de conflito, ofereceria maior segurança aos envolvidos.

Hoje a única regra que existe em relação à gestação de substituição é uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) publicada em janeiro, que serve de orientação aos médicos. Pela norma – que trata dos padrões éticos para a reprodução assistida -, as doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da futura mãe, num parentesco de até segundo grau. A orientação por si, porém, não soluciona problemas legais que possam surgir com a cessão. A legislação brasileira não veda o empréstimo de útero, mas ganhos financeiros com a medida não são permitidos. A Constituição Federal proíbe a venda de órgãos e a barriga de aluguel poderia ser interpretada como a comercialização de um órgão.

Essa mesma norma do CFM autorizou, no início do ano, o uso de material genético, em reprodução assistida, de doador que já tenha morrido – desde que permitida antes da morte. Na época em que a professora Katia Adriana Lenerneier decidiu utilizar o sêmen do marido, ainda não existia a resolução do Conselho. “Agora as clínicas já estão preparadas para essas situações”, afirma a advogada da professora, Dayana Sandri Dallabrida.

Há pouco mais de um ano, o advogado e presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Rodrigo da Cunha Pereira, foi chamado para uma tarefa com a qual nunca havia se deparado em seus quase 30 anos de carreira. Foi procurado por duas mulheres que vivem em união estável e dois homens na mesma situação. Os casais, que têm relações de amizade, queriam ter um filho, mas não de doadores anônimos. Por isso, decidiram utilizar seu próprio material genético: um dos homens doaria o sêmen e uma das mulheres doaria o óvulo e geraria a criança por meio de uma inseminação artificial. Antes de realizarem o procedimento, buscaram o advogado para que ele fizesse um contrato de geração de filho, com a previsão da guarda compartilhada pelos casais. A inseminação foi realizada e a criança registrada em nome dos pais biológicos. Mas a intenção dos casais é que conste na certidão de nascimento da criança os nomes dos dois homens e das duas mulheres, como pais. Segundo o advogado, seus clientes aguardarão mais um pouco antes de proporem uma ação no Judiciário com esse objetivo, pois hoje não existe qualquer precedente judicial nesse sentido. “Essa é a vida como ela é. Gostemos ou não essas coisas estão ocorrendo e o direito de família precisa evoluir”, diz.

O psicanalista e professor de psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Sócrates Nolasco avalia que a técnica da reprodução assistida muda a matriz da sociedade, ou seja, aquela família formada por um pai e uma mãe e cuja estrutura se repete há milhares de anos. “Cria-se um novo conceito de natureza humana, que influenciará diretamente os filhos.” Os sujeitos envolvidos nessas mudanças, pondera Nolasco, estão muito mais predispostos a angústias, que surgirão a partir do momento em que eles começarem a questionar-se de onde vieram. Essa seria a pergunta-chave do ser humano. A reprodução assistida estaria mexendo na questão da origem do homem. “O ranking de complexidades é imenso”, afirma.

Outra questão que continua em aberto para muitos casais é a destinação dos embriões excedentes – aqueles não utilizados na inseminação. No Brasil, há pelo menos 21.254 embriões congelados, conforme dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Mas o número pode ser bem maior, pois nem todos os 130 Bancos de Células e Tecidos Germinativos (órgãos vinculados aos estabelecimentos de saúde que prestam informações à Anvisa) existentes no país estão cadastrados na Anvisa. “Hoje há clínicas que têm contêineres de embriões congelados”, afirma o médico e conselheiro do Conselho Federal de Medicina, José Hiran da Silva Gallo, ao acrescentar que o tema é controverso no mundo inteiro

A explicação para tão grande número de estocagem está na própria Lei de Biossegurança. A norma, que foi amplamente discutida no Supremo Tribunal Federal (STF) e julgada constitucional em 2008, proíbe o descarte e limita o uso em pesquisas e terapias. Essa opção está reservada apenas para os embriões considerados inviáveis ou aqueles congelados há três anos ou mais, na data da publicação da Lei de Biossegurança, de 28 de março de 2005. Para os demais casos não há previsão legal e, por isso, inúmeros casais mantêm seus embriões congelados, pois não se enquadram na situação de pesquisa e não podem, simplesmente, descartá-los.

Por esse dilema passa um casal de Curitiba, que prefere não se identificar. Há dois anos, eles realizaram uma fertilização in vitro, ao custo total de R$ 15 mil. Bem-sucedido, o procedimento gerou dois meninos. Os gêmeos estão agora com dois anos e o casal pensa em ter mais um filho. No entanto, mesmo que venha mais esse bebê, sobrarão no laboratório sete embriões. O pai das crianças diz não ter ideia do que fazer com eles e até quando terá que mantê-los – ele paga uma anuidade pelo congelamento. “Se existisse lei, facilitaria-nos a vida, pois os embriões estão congelados por não termos opção”, afirma. “Também não pensamos em doá-los para outros casais, pois não queremos nossos filhos criados por outras pessoas.”

A gerente-geral de Sangue, Outros Tecidos, Células e Órgãos da Anvisa, Geni Neuman, afirma que, apesar de essa não ser a seara da agência – que apenas faz o controle e fiscalização do sistema -, a existência de uma lei sobre reprodução assistida e planejamento familiar facilitaria a atuação do órgão. “Temos dificuldade de regulamentar porque nos falta uma lei maior sobre isso.”

Outra questão que, na opinião de juristas, merece estar prevista em lei é a doação anônima de óvulos e sêmen. A professora Ana Cláudia Scalquette, cuja tese de doutorado foi sobre reprodução assistida, defende a criação de um sistema que permita aos filhos biológicos de doadores conhecerem sua origem genética na vida adulta. A medida seria também uma forma de evitar o casamento entre irmãos ou pessoas muito próximas. Para a professora, esse cadastro nacional deveria ser interligado ao registro de nascimentos, via cartórios. Mas a abertura dos dados só poderia ocorrer mediante autorização judicial e em situações de perigo de morte (necessidade de transplante, por exemplo) ou se o conhecimento da origem fosse necessário para o equilíbrio psicológico daquela pessoa.

O advogado Rolf Madaleno entende que o filho, fruto de doação anônima, poderá, na Justiça, pedir que o laboratório responsável pelo procedimento identifique a mãe ou pai biológico. “Conhecer a origem é um direito de qualquer cidadão.” No entanto, ele interpreta que essa identificação não geraria direitos à pensão ou à herança, por exemplo. Isso não ocorreria porque quem recebeu a doação de gametas, aceitou-a em sigilo. Mas nada impediria, porém, que o filho propusesse uma ação judicial para reivindicar esses supostos direitos.

A mesma discussão sobre sucessão se coloca para filhos concebidos com material genético de pai já morto. O filho nascido anos após a morte do pai teria direito à herança como os demais? Para a questão, as normas brasileiras ainda não têm uma resposta. A única previsão do Código Civil é aquele nascido da reprodução assistida será filho por presunção. Mas não há qualquer definição sobre quais direitos lhe seriam atribuídos. Ana Cláudia entende que os filhos nascidos nessa situação têm direito à herança, em respeito à própria Constituição Federal, que estabelece o direito à igualdade, dignidade e à herança. No entanto, como avalia, a lei deveria estabelecer limites para que esses direitos não representassem insegurança para os demais herdeiros. Para a advogada, o ideal seria estabelecer-se um prazo de três anos seguintes à morte do pai – período que segue a Lei de Biossegurança. Se a criança nascesse nesse período, teria direito à sucessão. Durante esse tempo, seria feito uma partilha provisória com os demais herdeiros.

Há poucas regras no Brasil

As poucas orientações existentes no Brasil sobre reprodução assistida estão em normas do Conselho Federal de Medicina (CFM). Essas regras, porém, não têm força de lei e regulamentam apenas as relações éticas entre médicos e pacientes. A última resolução publicada pela entidade foi em janeiro (Resolução n 1.957) e modificou norma de 18 anos atrás que tratava do tema. “Essas normas são sobre a ética e, se transgredidas, podem resultar na suspensão ou cassação do profissional”, afirma o médico ginecologista, conselheiro do CFM e relator da resolução, José Hiran da Silva Gallo.

A resolução inovou ao estabelecer o número máximo de quatro embriões que podem ser implantados nas pacientes – o que varia conforme a faixa etária. A medida teve por objetivo resguardar a saúde da mulher submetida ao tratamento. De acordo com o médico, uma multigravidez oferece riscos e, quanto mais alta a faixa etária da paciente, maior é a probabilidade de problemas. A destinação dos embriões excedentário será tema de uma discussão no CFM no segundo semestre. O conselheiro afirma que esse não é um problema apenas do Brasil, mas de inúmeros países. Dos debates, poderá surgir uma proposta de anteprojeto de lei sobre a questão.

A norma também trouxe como novidade a permissão para que os laboratórios aceitem realizar a reprodução assistida em casais homoafetivos. Assim como os procedimentos em pacientes cujo material a ser utilizado seja de doador que já morreu (post mortem). Pela resolução, o uso do material é permitido, desde que autorizado previamente e por escrito pelo doador. Dentre outros pontos, o CFM orienta os médicos para o fato de que as doações de gametas ou embriões nunca poderão ter fins comerciais, assim como a obrigação de manter-se o sigilo da identidade tanto de doadores, quanto receptores do material.

A resolução também trata da cessão do útero. A regra é que a doadora pertença à família, num parentesco até o segundo grau. Os demais casos estão sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina. A gravidez de substituição não pode ter fins comerciais, ou seja, a doadora do útero não pode cobrar por isso.

Zínia Baeta – De São Paulo