Breves apontamentos sobre a tutela antecipada requerida em caráter antecedente.

Breves apontamentos sobre a tutela antecipada requerida em caráter antecedente.

 

A doutrina há algum tempo vinha debatendo a necessidade de ampliação de instrumentos processuais, em que o exame jurisdicional é mais exíguo (restrição de cognição), visando economia de recursos e tempo. No campo doutrinário, tal debate teve importante marco através da sistematização da tutela diferenciada, por Andrea Proto Pisani[1].

A expressão “tutela diferenciada” serve como referência, tanto para os casos de tutela provisória (as liminares, antecipações de tutela), como ainda para a categoria por vezes referida pela doutrina como “ações sumárias”, em que se obtém provimento definitivo sem que haja cognição completa por parte do juiz (ex: ação monitória).

A ideia de tutela jurisdicional diferenciada se contrapõe a ideia moderna sobre a tutela jurisdicional. Esta última se assenta na premissa de que o provimento se tornará imutável (coisa julgada material) após longa instrução processual, em que será garantido o exercício do contraditório e impugnações recursais, já que o direito deve prover segurança e certeza.

De outro lado, a ideia de tutela jurisdicional diferenciada tem como objetivo ganho de eficiência[2], favorecendo a celeridade da prestação jurisdicional. Pressupõe que para a discussão de certas controvérsias não é necessária cognição plena e exauriente, sendo que tal supressão implica em significativa redução da dilação probatória, além da possibilidade de redução de prazos e adoção de técnicas outras de sumarização do procedimento. Tudo isso sem comprometer a garantia do devido processo legal, já que a tutela a ser emanada de tal procedimento seria passível de ser alterada (não revestida dos efeitos da coisa julgada material).

Para alguns direitos, a tutela jurisdicional diferenciada teria o ganho de inibir o abuso do direito a essa defesa e eliminaria, pelo menos em parte, o dano marginal decorrente da excessiva demora na prestação jurisdicional.

Feitas tais considerações sobre o significado da tutela jurisdicional diferenciada, importante destacar que o legislador de 2015 desejou ampliar a existência de procedimentos desta natureza, e incluiu, no código de processo civil de 2015, a possibilidade de “estabilização da tutela” em procedimento requerido em caráter antecedente (artigos 303 e 304).

Em resumo, o CPC de 2015 previu a possibilidade de pedido antecedente nos casos em que a urgência for contemporânea à propositura da ação, sendo lícito que a petição inicial se limite ao requerimento da tutela antecipada e à indicação do pedido de tutela final, com breve exposição da lide, do direito que se busca realizar e do perigo de dano; sendo facultado posteriormente complementar sua argumentação, juntar novos documentos, e confirmar o pedido de tutela final.

Tal instituto foi instituído para os casos em que a urgência da obtenção da liminar seja tamanha, que não seja viável aguardar que o cliente encontre todos os documentos e informações para elaborar a petição inicial de forma completa.

Neste sentido, é facultado apresentar o pedido antecedente já com os documentos e a argumentação que for possível, porém mínima no sentido de permitir ao juiz apreciar o pedido.

Porém, a novidade não se encerra neste ponto, que por si só não implica em adoção de tutela diferenciada neste procedimento. De acordo com a regra contida no art. 304, CPC/2015, caso a tutela antecipada seja concedida, inaldita altera parte, o Autor tenha requerido o benefício da técnica de estabilização da tutela e o Réu não tenha interposto, em face desta antecipação de tutela, o respectivo recurso (agravo de instrumento), tal provimento jurisdicional torna-se estável e o procedimento é extinto.

Para aplicação de tal sistemática, o Autor teria que pleitear, de forma taxativa, pela aplicação de tal benefício (§ 5º, art. 303, CPC/2015), pois o juiz não tem como presumir se o Autor estará satisfeito ou não com a simples obtenção da tutela antecipada. Não se pode obrigar o autor a se contentar com uma tutela provisória “estabilizada” apta a ser desafiada por demanda contrária movida pelo réu do processo original sob pena de violação à garantia da inafastabilidade da jurisdição, art. 5°, XXXV da Constituição Federal.

A tutela estabilizada poderá, no prazo de 2 (dois) anos, contado da ciência da decisão que extinguiu o processo, ser objeto de pedido de revisão, reforma ou invalidação, através de ação autônoma para esse fim (já que tal “estabilização” não se confunde com a coisa julgada material), e seus efeitos como a imutabilidade da decisão, não ocorrem, sendo permitido, portanto, rediscutir a questão controvertida.

O referido instituto foi inspirado no référé do Direito francês, e serviria para abarcar aquelas situações em que as partes se contentam com a simples tutela antecipada, não havendo necessidade, portanto, de se prosseguir com o processo até uma decisão final (sentença). Em outras palavras, o autor fica satisfeito com a simples antecipação dos efeitos da tutela satisfativa e o réu não possui interesse em prosseguir no processo e discutir o direito alegado na inicial.

Porém não são poucas as dúvidas e inquietudes em relação ao novo instituto.

Uma questão que desde logo se coloca é o caso do Autor pleitear pela aplicação deste benefício e o juiz conceder a antecipação da tutela de forma parcial (ex. pedido liminar para que operadora de plano de saúde arque com despesas de procedimento cirúrgico, tanto os custos médicos como hospitalares, e o juiz apenas concede a antecipação em relação aos custos médicos). De acordo com Heitor Vitor Mendonça SICA[3], tal questão é resolvida facilmente, já que o CPC/2015 permite o julgamento parcial de mérito, de modo que a tutela antecipatória concedida, se não objeto de recurso seria estabilizada, enquanto a parte do pedido à qual a antecipação da tutela não foi concedida se torna questão controvertida e segue o procedimento comum. Ou seja, parte do pedido estaria extinto e o processo prossegue em relação à questão controvertida.

Porém a questão fica mais complexa se pensarmos sobre a possibilidade de pedidos sucessivos. Nas palavras de Heitor Vitor Mendonça SICA[4]: “Pense-se no exemplo do autor que, alegando-se proprietário de um imóvel pede, em caráter principal, a imissão provisória na posse e, em caráter subsidiário, que réu seja obrigado a reconstruir parte do imóvel que foi demolida. Se o juiz deferir a segunda providência e o réu não recorrer, persiste o interesse do autor no prosseguimento do processo para análise do pedido principal em sede de cognição exauriente, cuja improcedência – ao reconhecer que o autor não tem direito sobre o bem – prejudicará a antecipação do pedido subsidiário de tutela. Nesse caso, entendo que a estabilização não poderia ser aplicada.

Evidente que a questão poderá, conforme exemplo acima, se tornar mais complexa e a solução mais intrincada, até porque não prevista na legislação, que deixa para o campo da doutrina e jurisprudência a resolução de tal problema.

Outra relevante questão se relaciona a necessidade da interposição de recurso para que a tutela antecipada concedida em caráter antecedente não se estabilize. Tal opção legislativa é questionável, por dois ângulos.

O primeiro é o de impor ao Réu a necessidade de interpor recurso, quando talvez não o desejasse, sendo que tal regra vai na contramão do espírito do próprio código no que se refere a desafogar os tribunais de pletora de recursos e limitar a recorribilidade das decisões interlocutórias.

O segundo é a falta de organicidade do sistema, se imaginarmos a hipótese em que o réu não recorreu da decisão concessiva de tutela provisória e tenha apresentado defesa com elementos e argumentos que convençam o juiz de que a tese do autor e que ensejou a concessão da liminar é improcedente. Nesse caso o juiz está obrigado a extinguir o feito e estabilizar a tutela ou poderá revogá-la à luz do aprofundamento da cognição oportunizado pela defesa do réu?

Tal discussão é imensa e recentemente (04/12/2018), no julgamento do Recurso Especial nº 1.760.966 – SP, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, estabeleceu entendimento de que a simples contestação é suficiente para afastar a possibilidade de estabilização da tutela.

Não obstante, tal entendimento não tem efeitos vinculantes e sequer podemos afirmar, neste primeiro momento, que será o entendimento pacífico no próprio seio do STJ.

Outra dificuldade que é possível aferir é a opção legislativa no sentido de que tal “benefício” apenas será concedido aos pedidos de natureza satisfativa e não aos de natureza cautelar[5] (art. 305, CPC/2015).

Não obstante a clareza teórica que distingue o provimento cautelar da antecipação da própria tutela, não se pode esquecer os imensos problemas que tal distinção já trazia no CPC/1973 e que levou o legislador a incluir no art. 273, novo inciso (§ 7°), para quando o autor invocasse um pedido liminar de natureza cautelar e o magistrado entendesse que se tratava de natureza satisfativa e vice-versa, pudesse deferir a medida se presentes seus pressupostos, pelo princípio da fungibilidade e não houvesse que indeferi-lo, simplesmente.

Não obstante, parece que o legislador de 2015 se esqueceu deste problema prático e ao limitar o cabimento do benefício de estabilização à tutela provisória satisfativa, reavivou discussões teóricas que há longos anos haviam se tornados desnecessárias.

Evidentemente que existirão casos em que os autores pedirão tutelas provisórias de urgência em caráter antecedente e autônomo, invocando os arts. 303 e 304 sob o entendimento de que a providência é satisfativa e haverá juízes que entenderão o contrário e se negarão a estabilizar a decisão concessiva sob o fundamento de que a providência é meramente cautelar. Nestes casos, o recurso que o réu deixou de interpor será substituído por outro a ser manejado pelo autor para insistir na natureza satisfativa do provimento e na necessidade de sua estabilização.

Pelas razões acima expostas, em nosso sentimento, a introdução de tal técnica em nosso diploma processual, será de pequena valia e poderá trazer diversas dúvidas e dificuldades. Trata-se de técnica importada de sistemas em que a abreviação do procedimento em face da inércia do réu se revela excepcional[6], de tal modo que se torna necessário criar meios de antecipar o início da execução, porém o nosso sistema já tem meios adequados para tanto, em especial o julgamento antecipado da lide fundado no art. 355, II, do novo CPC.

Por fim, destacamos a observação feita por Donaldo ARMELIN[7] no sentido de que a adoção de tipos de tutela diferenciada tende a favorecer o polo ativo da relação processual, na medida em que são eles concebidos com o objetivo de acelerar a prestação jurisdicional. Por isso mesmo, indispensável se tomar cautela na sua adoção, para se evitar a violação do tratamento isonômico das partes litigantes e a vulneração do princípio assegurador da paridade das armas no processo.

Rodrigo Elian Sanchez

 

 

[1] PISANI, Andrea Proto. Problemi della c.d. tutela giurisdizionale differenziata. Appunti sulla giustizia

civile. Bari: Caccuci, 1982.

[2]ARMELIN, Donaldo. Tutela jurisdicional diferenciada. In: Revista de processo. 1992. V. 65, p. 47.

[3] SICA, Heitor Vitor Mendonça. Doze problemas e onze soluções quanto à chamada “estabilização da tutela antecipada”. Procedimentos especiais, tutela provisória e direito transitório (Coleção Novo CPC Doutrina Selecionada), v.4, Lucas Buril de Macêdo; Ravi Peixoto, Alexandre Freire (coord.), Salvador: Juspodium, 2015, p. 425.

[4]SICA, Heitor Vitor Mendonça. Ob. Cit., p. 425.

[5] Em síntese bastante superficial as tutelas de natureza cautelar têm como objetivo, assegurar o resultado útil do processo, ou seja, não antecipam o provimento final do processo principal, mas apenas o conserva

[6] LEONEL, Ricardo Barros. Tutela jurisdicional diferenciada no Projeto de Novo Código de Processo Civil, In: Revista de Informação Legislativa, Brasília, Ano 48, n. 190, 2011, p. 179 a 190.

[7] ARMELIN, Donaldo. Ob. Cit. Página 47.