BOLETIM INFORMATIVO – FEVEREIRO DE 2021

Boletim RES, Advogados

Fevereiro de 2021

 

Prezados Srs., neste boletim trazemos artigos nas áreas do direito: digital, imobiliário, cível e societário.

 

No campo do direito digital, abordamos as principais características da Lei Geral de Proteção de Dados, em seu início de vigência.

 

No campo do direito imobiliário, recente decisão do STF que reviu precedente vinculante do próprio STF pela constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador do contrato de locação comercial é objeto de análise, bem como a insegurança jurídica gerada.

 

Na área cível, o artigo trata da abusividade da exclusão dos dependentes de planos de saúde familiar, que permaneceram como beneficiários por décadas após terem atingido a idade limite.

 

Por fim, na área de direito societário, do abuso dos sócios minoritários nas sociedades empresárias.

 

Lembramos que em nosso site você pode sempre encontrar notícias atualizadas. Uma boa leitura.

Índice:

 

 

Direito Digital:

 

Lei Geral de Proteção de Dados.

Fls…………………..……………………………………………………………………………………….3-6

– Eduardo Galvão Prado

 

 

Direito Imobiliário:

 

A (Im)penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação comercial e o RE 605.709 do STF.

Fls……………………………………………………………………………………………………………7-14

Rodrigo Elian Sanchez

 

 

Direito Cível:

 

Abusividade da exclusão de dependentes de planos de saúde familiar, após longo período em que atingiram a idade limite.

Fls………………………………………………………………………………………………………….15-18

– Marcelo Barretto Ferreira da Silva Filho

 

 

Direito Empresarial:

 

O bloqueio abusivo pelos sócios minoritários nas sociedades empresárias.

Fls………………………………………………………………………………………………………….19-27

– Flávia de Faria Horta Pluchino

 

 

Lei Geral de Proteção de Dados. 

 

A Lei Geral de Proteção de Dados – “LGPD” (Lei Federal nº 13.709/2018), entrou em vigor no dia 18/09/2020, sendo um marco regulatório de grande relevância.

 

A LGPD regulamenta a utilização de dados pessoais na posse de terceiros, tanto em meios físicos quanto em plataformas digitais. O objetivo da lei é de proteção dos direitos fundamentais da liberdade, privacidade e do livre desenvolvimento da personalidade do titular dos dados.

 

O titular dos dados pessoais protegidos é a pessoa física a quem se referem os dados, e o controlador é a empresa ou órgão público ou privado ou mesmo uma pessoa física, que possui os dados e de acordo com a lei, é responsável por seu tratamento.

 

O conceito de dado pessoal abrange qualquer informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável, inclusive os dados pessoais sensíveis: informação sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural.

 

O tratamento, consiste na coleta e recepção dos dados pessoais, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração.

 

Para cumprir sua finalidade, a lei estabeleceu direitos aos titulares dos dados pessoais, bem como, deveres e responsabilidade aos controladores, que devem zelar principalmente, pela privacidade dos dados.

 

O controlador apenas poderá manter a posse de dados pessoais de um terceiro, nas hipóteses previstas na lei. As principais são: obrigação legal para o controlador possuir os dados; consentimento dos titulares, que pode ser revogado a qualquer momento; contratos realizados entre o controlador e o titular dos dados; utilização das informações em processos (judiciais, administrativos ou arbitrais), quando necessárias para a defesa de direitos do controlador; utilização para a proteção da saúde do próprio titular, proteção de crédito entre outras situações.

 

O titular, sempre terá direito ao acesso facilitado das informações sobre a utilização dos seus dados pessoais, como a finalidade, a forma e duração da utilização, identificação e contato do controlador entre outras informações.

 

Após o tratamento, os dados devem ser eliminados, salvo se houver consentimento do titular pela manutenção ou algumas situações previstas na lei, em que o controlador poderá permanecer com os dados. Nessas situações, sempre que possível, os dados devem ser anonimizados, que é a exclusão de elementos que identifiquem o titular.

 

A fiscalização para garantir o cumprimento da lei, será realizada pela autoridade nacional de proteção de dados que, em caso de violação poderá aplicar multa de até cinquenta milhões de reais, bem como, pelos titulares dos dados, que poderão buscar a reparação dos danos, através de processo judicial.

 

De acordo com a lei, as sanções administrativas aplicadas pela autoridade nacional de proteção de dados, como a multa, poderão ocorrer apenas a partir de agosto de 2021, porém, como a lei está vigente desde 18/09/2020, os titulares dos dados já podem ingressar com medidas judiciais em caso de violação dos seus direitos.

 

Portanto, as empresas e órgãos, públicos ou privados, devem se adequar às normas estabelecidas na lei, para evitar possíveis sanções.

 

A nova legislação é bastante complexa e a consulta de especialistas é necessária, diante de questões complexas como: aplicação da LGPD em hipóteses em que os dados tenham sido coletados em território nacional e o controlador tenha sua sede em outro país ou lá estejam localizados os dados; hipóteses de não aplicação da LGPD em razão do tratamento ser realizado por pessoa natural para fins exclusivamente particulares e não econômicos; ou para fins exclusivamente: jornalístico, artísticos ou acadêmicos, segurança pública, entre outras exceções previstas no art. 4° da novel legislação, ou até mesmo a polêmica questão em relação à extensão da proteção dada aos dados das pessoas naturais às pessoas jurídicas[1].

 

Eduardo Galvão Prado

 

 

A (Im)penhorabilidade do Bem de Família do Fiador do Contrato de Locação Comercial e o RE 605.709 do STF.

 

 

De acordo com a legislação brasileira o fiador do contrato de locação não tem a proteção da impenhorabilidade do bem de família.

 

Tal possibilidade, advém da lei de locações urbanas (Lei n.º 8.245/91) ter alterado a redação do art. 3° da Lei n° 8.009/1990 (que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família), e ter incluído entre as exceções a impenhorabilidade, a obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

 

Em outras palavras, existindo débito locatício, o fiador poderá responder, inclusive, com seu imóvel residencial, que poderá ser penhorado e posteriormente leiloado ou adjudicado, para quitação do débito locatício.

 

Tal regra foi convalidada pela jurisprudência, tendo sido sua inconstitucionalidade, arguida intensamente perante os tribunais de justiça estaduais.  Alguns processos que tratavam desta questão chegaram até os tribunais superiores: STJ e STF.

 

A questão é realmente de alta indagação, diante dos direitos que estão em jogo. Não são poucos os que defendem que o cidadão não se pode despojar o fiador e sua família do refúgio de sua residência para, mediante expropriação forçada, converter o bem de família em pecúnia, a fim de satisfazer o crédito do locador. Nessa linha de pensamento, se autorizada a penhora do bem de família do fiador, estaria por esvaziar o princípio da solidariedade e a absoluta indiferença com a dignidade do garantidor e sua família, diante da sobreposição de um direito disponível – crédito – sobre um direito fundamental – moradia.

 

Contudo, a jurisprudência da Suprema Corte firmou-se no sentido da constitucionalidade do artigo 3º, inciso VII, da Lei n. 8.009/1990, em face do artigo 6º da Constituição Federal, que consagra o direito à moradia.

 

“FIADOR. Locação. Ação de despejo. Sentença de procedência. Execução. Responsabilidade solidária pelos débitos do afiançado. Penhora de seu imóvel residencial. Bem de família. Admissibilidade. Inexistência de afronta ao direito de moradia, previsto no art. 6º da CF. Constitucionalidade do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009/90, com a redação da Lei nº 8.245/91. Recurso extraordinário desprovido. Votos vencidos. A penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação, objeto do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009, de 23 de março de 1990, com a redação da Lei nº 8.245, de 15 de outubro de 1991, não ofende o art. 6º da Constituição da República.” (RE 407.688, Rel. Min. CEZAR PELUSO, TRIBUNAL PLENO, DJ 06.10.2006) ”.

 

Ainda o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, em 2010, ao julgar o recurso paradigma RE 612.360, resolveu a questão, em sede de repercussão geral (tema 295/STF) tendo firmado a seguinte tese:

 

É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no art. 3°, VII, da lei 8.009/90 com o direito à moradia consagrado no art. 6° da CF, com redação da EC 26/20“.

 

Posteriormente, a segunda seção do Superior Tribunal de Justiça, em 2014, ao julgar o REsp 1363368/MS pela sistemática dos recursos repetitivos (tema 708/STJ) também entendeu legítima a penhora do bem de família do fiador de contrato de locação, tendo fixado a seguinte tese:

 

“É legítima a penhora de apontado bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, ante o que dispõe o art. 3º, inciso VII, da lei 8.009/90”.

 

A “pá de cal” veio em 2015, quando o Superior Tribunal de Justiça pacificou de vez a questão com a publicação da súmula 549: É válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação“.

 

Os precedentes do STJ, tanto o REsp 1.363.368/MS, que serviu de paradigma para o tema 708/STJ, quanto os recursos: AgRg no AREsp 624.111/SP; REsp 1.363.368/MS; AgRg no AREsp 160.852/SP; AgRg no AREsp 31.070/SP; AgRg no Ag 1.181.586/PR; e AgRg no REsp 1.088.962/DF, tiveram, na origem, a possibilidade da penhora do bem de família do fiador em locação comercial.

 

A questão estava pacificada, quando em 12 de junho de 2018, a 1ª turma do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 605.709,  aplicou o distinguishing[2], conheceu referido recurso e deu provimento por entender que os precedentes do STF tratavam de casos em que a penhorabilidade do bem de família do fiador tinha como origem contratos de locação residenciais, sendo que o caso versado no RE 605.709 se tratava de hipótese diversa: contrato de locação comercial.

 

Em resumo, em referido julgamento, o STF reviu sua posição e declarou inconstitucional a penhora do bem de família do fiador de contrato de locação comercial, mesmo que a Lei de locações urbanas não faça distinção entre a locação residencial e comercial.  A decisão se deu pela maioria de 3 x 2, tendo votado pela tese vencedora a Ministra Rosa Weber, Redatora para o acórdão, vencidos os Ministros Dias Toffoli, Relator, e Luís Roberto Barroso.

 

Em face de tal acórdão foi interposto embargos de divergência, tendo sido suscitado que o julgamento diverge do precedente fixado pelo próprio Supremo Tribunal Federal, no RE 612.360, processo paradigma que originou o Tema n. 295, que tratava especificamente de locação de imóvel comercial. Tal recurso está pendente de julgamento.

 

Não obstante, a decisão do STF no RE 605.709 já tem causado grande insegurança jurídica no mercado de locações urbanas. Isso porque, a jurisprudência que era pacífica até recentemente, já apresenta divergências:

 

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. Ação de Despejo c.c. Cobrança. Locação não residencial. Fase de cumprimento de sentença. Penhora que recaiu sobre imóvel de propriedade da fiadora coexecutada, que opõe Exceção de Pré-executividade, com arguição de impenhorabilidade do bem, sustentando tratar-se de “bem de família”. Decisão que rejeita a Exceção, autorizando o prosseguimento do cumprimento de sentença. INCONFORMISMO deduzido no Recurso. ACOLHIMENTO. Direito fundamental à moradia que se sobrepõe aos interesses da livre iniciativa, justificando-se a prevalência da impenhorabilidade do “bem de família”, a despeito da previsão do artigo 3º, inciso VII, da Lei nº 8.009/90, por versar a execução débito decorrente de locação de imóvel não residencial. Aplicação do entendimento adotado pelo C. Supremo Tribunal Federal no RE nº 605.709/SP. Decisão reformada. RECURSO PROVIDO[3].

 

A verdade é que a recente decisão do STF mesmo que tenha por trás as melhores intenções, implicou na alteração de precedentes fixados pela própria corte, sem o devido cuidado e observância dos procedimentos; o quê infunde imensa insegurança jurídica.

 

O STF se utilizou do distinguishing para superar os precedentes, porém para se utilizar de tal técnica seria necessário à 1° Turma do STF o ônus argumentativo de demonstrar que os casos paradigmas em que foram fixados os precedentes tratavam exclusivamente de casos de locação residencial, bem como que a razão de decidir pela constitucionalidade da regra da penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação, residiu nesta peculiaridade.

 

Tal premissa cai por terra quando se verifica que no caso do RE nº 612.360/SP, o litígio tinha com pano de fundo locação comercial.

 

De outra banda, o que se verifica é que tanto o julgamento do RE 407.688, (Rel. Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, dj 06.10.2006), como do RE nº 612.360/SP (Rel. Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, dj 16.09.2010), não se fundam, exclusivamente, na tese de que a robustez da garantia fidejussória viabiliza o direito à moradia, na medida em que os proprietários se sentem mais atraídos para colocar imóveis à locação, bem como em razão da fiança não ter custo (ao contrário de caução ou garantias bancárias) e ser mais acessível aos locatários.

 

Pela leitura dos votos se verifica que a colegiado entendeu existir conflito normativo entre a proteção da moradia e a proteção do direito fundamental da autonomia da vontade (pelo qual alguém pode dispor de seu bem oferecendo-o em garantia), bem como que o direito de propriedade não se confunde com o direito de moradia.

 

Em resumo, entendemos que a forma com que a superação dos precedentes ocorreu não observou as cautelas e procedimentos devidos. Devemos lembrar, que o Código de Processo Civil de 2015 almeja a construção de regime dos precedentes, sendo que a regra contida no art. 926 do referido código destaca a necessidade de os tribunais uniformizarem a sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

 

É imprescindível, portanto, que os próprios tribunais que estabelecem as decisões vinculantes “mantenham uma jurisprudência razoavelmente estável“.  Porém, no caso do julgamento do RE 605.709 o que chama a atenção é que a 1° turma do STF não seguiu tese fixada pelo seu próprio plenário, sem observar os devidos cuidados.

 

Neste sentido o deslinde do julgamento do RE 605.709, ganha contornos que vão muito além do mercado imobiliário e que servirão para demonstrar o “compromisso” do judiciário com a construção e um verdadeiro sistema de precedentes.

 

Rodrigo Elian Sanchez

 

 

Abusividade da Exclusão de Dependentes de Planos de Saúde Familiar, Após Longo Período em que Atingiram a Idade Limite:

 

 

Nos contratos de plano de saúde familiar existe a figura do titular e dos dependentes (estes últimos, geralmente, cônjuge e filhos). No que se refere aos filhos, os contratos geralmente preveem idade limite (via de regra, 25 anos), que, quando atingida, acarreta a exclusão dos dependentes do plano.

 

Ocorre que, não raras vezes, mesmo atingindo a idade limite, o plano de saúde simplesmente deixa de excluir os dependentes, fazendo com que estes continuem como beneficiários do titular.

 

Tal inércia das operadoras, quando se consolidam por longos anos, criam expectativas e o que tem ocorrido na prática é que, não mais do que de repente, estes dependentes são surpreendidos com uma carta do plano de saúde os informando que perderam a elegibilidade prevista no contrato de plano de saúde individual/familiar, não sendo permitida sua permanência como dependentes.

 

Não é preciso mencionar as diversas vicissitudes geradas por tal situação, já que, junto com a notícia da exclusão, é informado prazo peremptório, em torno de 60 (sessenta) dias, a contar do recebimento da carta, em que, escoado, são os dependentes excluídos do plano, sendo que, são notórias as dificuldades para ingressar em um novo plano de saúde, notadamente por conta de novos prazos de carência, além do alto custo para novas contratações.

 

Ocorre que, em casos assim, ou seja, quando se trata de contratos familiares, em que os dependentes permanecem como beneficiários do plano por longo período após terem atingido a idade limite, o Judiciário tem entendido que a exclusão é abusiva.

 

Em outras palavras, quando, durante anos posteriores ao implemento da idade, os dependentes são mantidos como beneficiários do plano, usufruindo de sua cobertura e cumprindo com seus deveres de forma correta e pontual – inclusive com o pagamento de mensalidades, fica caracterizada a supressio, que decorre do não exercício de determinado direito por seu titular, no curso da relação contratual, gerando para a outra parte, em virtude do princípio da boa-fé objetiva, a legítima expectativa de que não mais se mostrava sujeito ao cumprimento da obrigação.

 

No caso, ao manter os dependentes do plano de saúde por longo período após terem completado a idade limite, o plano de saúde gera a legítima expectativa de que renunciou ao exercício da cláusula que autorizaria a exclusão, não sendo razoável que o plano de saúde escolha o momento para exercício da faculdade contratual, pois, se assim fosse, os beneficiários ficariam em situação de extrema vulnerabilidade e desequilíbrio contratual.

 

Na linha do que foi explicado acima, em recente caso patrocinado por nosso escritório, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo determinou a manutenção dos beneficiários no plano, vejam:

 

“Ação cominatória. Restabelecimento de plano de saúde. Beneficiários dependentes da titular do plano. Plano que foi cancelado sob o argumento de ausência de elegibilidade dos Autores. Questão que não pode ser a eles imputada. Incidência do princípio da boa-fé objetiva. Inércia por longo período da Ré em exigir o cumprimento de cláusula contratual. Inadmissibilidade da resilição unilateral em casos de contratos individuais/familiares, observado o artigo 13 da Lei 9.656/98. Restabelecimento do plano de saúde dos Autores que é medida de rigor. Sentença de procedência mantida. Honorários sucumbenciais majorados para 15% do valor da causa (art. 85, § 11, do CPC). Recurso não provido. (TJSP – Apelação nº 1015151-85.2020.8.26.0002 – 3ª Câmara de Direito Privado – Des. Rel. João Pazine Neto – J. 03/11/2020) ”.

 

A questão se relaciona, na essência, com a segurança jurídica e proteção da confiança, fundamental para evitar distorções de direitos legitimamente constituídos e considerando que a: “segurança jurídica é um valor constitutivo do Direito, visto que sem um mínimo de certeza, de eficácia e de ausência de arbitrariedade não se pode, a rigor, falar de um sistema jurídico. [4]

 

Marcelo Barretto Ferreira da Silva Filho

 

            

O Bloqueio Abusivo pelos Sócios Minoritários nas Sociedades Empresárias.

 

1. O princípio majoritário e a proteção das minorias:

 

O cerne do direito societário brasileiro é o princípio da cooperação, que decorre do fenômeno associativo. Ainda que o objetivo final da reunião de pessoas para desenvolver um negócio seja o lucro, a forma como este objetivo será alcançado perpassa pelos diferentes interesses individuais de cada sócio.

 

Neste sentido, as normas de organização societária têm como finalidade harmonizar os interesses conflitantes das partes que se juntam para constituir uma sociedade.

 

Dentre estas normas, merece destaque aquelas que organizam o processo jurídico de formação da vontade coletiva.

 

No direito brasileiro, adotou-se o sistema majoritário, segundo o qual, o acionista ou sócio que possuir a titularidade de metade das ações ou quotas mais uma, tem o poder de comandar a sociedade e definir os rumos dos negócios sociais.

Conforme ensina KOMPARATO (2008, p. 60), o princípio majoritário parte do postulado que a sociedade existe no interesse dos sócios e, como ninguém, em princípio, está investido da prerrogativa de decidir pelos interesses alheios, prevalece sempre a vontade do maior número, julgando cada qual seu próprio interesse.

 

Entretanto, a adoção do sistema majoritário não significa constranger a minoria e desprezar seus interesses. Desta forma, como contraposição do princípio majoritário, surgem as regras de proteção da minoria, que impõem deveres e limites à atuação da maioria, a fim de se evitar que ela, por comandar os rumos sociais, conduza os negócios em prol exclusivamente de seus interesses particulares, com o esvaziamento do processo de deliberação assemblear.

 

As regras de proteção à minoria, portanto, são a forma encontrada pela doutrina e pela Lei para se evitar que os minoritários se tornem meros acompanhantes ou assistentes dos majoritários, sem jamais deterem a possibilidade de influenciar a política societária.

 

Segundo Marcelo Vieira Von Adamek, citando os ensinamentos de Herbert Wiedemann:

 

“(…) A função de proteção da minoria é evitar riscos de uma desigualdade de tratamento, quando a relação de supremacia e subordinação se torna uma relação estável de dominação. ”[5]

 

Integram o rol de proteção à minoria, os direitos formais de minoria, tais como os que exigem determinado quórum de votação ou de capital para o seu exercício, tais como, quórum de 5% para convocação de assembleia geral, ante à recusa dos administradores em atenderem, no prazo de 8 dias, o pedido de convocação que os minoritários apresentarem; mesmo quórum para convocar assembleia geral destinada à instalação do Conselho Fiscal; e, ainda, a exigência de que no processo de cisão, as ações integralizadas com parcelas de patrimônio da companhia sejam atribuídas a todos os titulares na mesma proporção das ações/quotas que detinham na companhia cindida, de modo a evitar que a maioria possa reservar para si a melhor parte da sociedade cindida e aos minoritários as partes indesejadas.

 

Além destes, há também os direitos substanciais de minoria, que compreendem a garantia da minoria de requerer o voto múltiplo, que lhe permitirá participar da administração social; a exigência de maiorias qualificadas para a sociedade decidir sobre matérias relevantes, onde a efetiva participação da minoria no processo decisório se torna indispensável; a possibilidade de sua participação nos órgãos de fiscalização e de administração, além do controle administrativo e judicial dos atos da maioria.

 

2. O abuso da minoria do direito brasileiro:

 

Apesar da preocupação do direito societário com os mecanismos de proteção à minoria, não se pode ignorar o fato de que ela também pode utilizar suas prerrogativas e direitos de forma desleal e abusiva, em prejuízo à sociedade.

 

Em outras palavras, assim como o poder majoritário é exercido no limite do interesse social, também os direitos dos minoritários encontram neste os limites de seu exercício. Ambos representam o mesmo espectro do dever de lealdade, regra geral de conduta para a delimitação de interesses e poderes de sócio.

 

Na sociedade, deve-se respeitar o interesse do sócio que não se contraponha ao escopo comum de realização do objeto social com fim lucrativo.

 

Justamente aí se insere a regra geral de conduta enunciada pelo dever de lealdade: o sócio deve se abster de qualquer comportamento que, de alguma forma, possa impedir a realização pela sociedade do fim social, independentemente de sua condição de majoritário ou minoritário.

 

O abuso da minoria, portanto, é o uso dos direitos e prerrogativas conferidos aos minoritários, como meio para perseguir interesses individuais que contrariam ao interesse social.

 

Várias são as formas de abusos das posições minoritárias, sendo que a maneira mais comum é através do bloqueio abusivo, que é o foco deste trabalho e será melhor demonstrado a seguir.

 

3. Abuso do direito de voto: imposição da vontade minoritária pelo bloqueio abusivo:

 

O bloqueio abusivo, também chamado abusos negativos da minoria, ocorre quando os minoritários, exercem seu direito de voto de modo a impedir que a política almejada pela maioria possa se desenvolver.

Segundo aponta ADAMEK (2010, p. 246), o obstrucionismo pode se manifestar através do bloqueio expresso em votos contrários à proposta submetida à deliberação; pelo não comparecimento ao conclave ou pela abstenção dos minoritários presentes, quando seu voto é indispensável à aprovação da matéria; e através do distúrbio, do tumulto promovido intencionalmente pelos sócios reunidos em assembleia, visando obstar o processo decisório.

 

Exemplo prático de obstrução abusiva pode ser verificado na deliberação sobre contas da administração e demonstrações financeiras do exercício social.

 

Como na deliberação sobre as contas e as demonstrações financeiras, os sócios administradores estão impedidos de votar, a minoria pode se encontrar numa situação em que definirá sozinha o resultado da deliberação, ocasião em que por capricho ou para tentar valorizar seu “passe” dentro da sociedade, sem apresentar qualquer justificativa, pode rejeitar as referidas contas.

 

Esta situação traz evidentes problemas à gestão social, pois impede, no plano interno, a distribuição de lucros e, no plano externo, gera descrédito da sociedade perante o mercado, dificultando o desenvolvimento do escopo social.

Esta mesma situação abusiva pode ser verificada quando a minoria hostil, antevendo a impossibilidade de impor a sua vontade na deliberação social, promove tumulto no ambiente em que os sócios estão reunidos, de modo a obstruir os debates e as deliberações.

 

E, também quando o minoritário, ciente da essencialidade de seu voto, se abstém ou se recusa a aprovar aumento de capital necessário à continuidade da empresa, em montante compatível e por preço justificado, apenas porque pretende fazer prevalecer interesse pessoal. Aqui, é importante revelar que nem mesmo o receio da minoria em ver diluída a sua participação social justifica a oposição a um aumento essencial à sobrevida da sociedade.

 

Exceto se restar demonstrado que o aumento não seja a solução para o problema, a recusa ou a abstenção do minoritário será considerada abuso negativo.

 

É certo que nenhuma destas condutas são toleradas à luz do dever societário de lealdade. Entretanto, não é qualquer oposição da minoria que se configura exercício abusivo do direito de voto. Fosse isto possível, haveria o esvaziamento do processo de deliberação e o minoritário se tornaria mero espectador e acompanhante da maioria, justamente a situação que se busca evitar.

Assim, a configuração do bloqueio abusivo depende de demonstração da intenção dissociada do escopo comum da sociedade, cuja sanção vai desde o afastamento do voto abusivo à responsabilização por perdas e danos e suprimento de declaração de vontade não emanada, culminando com a exclusão dos sócios minoritários, por decisão da sociedade ou até mesmo judicialmente.

 

4. Conclusão:

 

Conquanto seja o abuso da maioria o foco de atenção do direito societário brasileiro, é certo que a mesma correlação entre poder e responsabilidade permite abusos dos minoritários, pelo uso desleal dos direitos e prerrogativas instituídos para sua proteção.

 

A forma mais comum dos minoritários exercerem abusivamente suas prerrogativas é através do denominado bloqueio abusivo, que ocorre quando a minoria exerce seu direito de voto apenas com vistas em interesses individuais e em detrimento do interesse social, impedindo que a política almejada pela maioria possa se desenvolver.

 

Entretanto, o abuso da minoria não é presumível e ainda que o controlador seja muitas vezes tentado a enquadrar qualquer recusa dos minoritários como conduta abusiva, justamente porque as sanções previstas são gravíssimas, é necessária sua comprovação por aquele que procura afastar o direito de voto do sócio.

 

Assim, mesmo sendo uma realidade no âmbito societário brasileiro, o enquadramento do exercício do voto abusivo por parte de um minoritário, depende de criteriosa análise caso a caso, não ficando ao arbítrio da maioria controladora sua definição.

 

Flávia de Faria Horta Pluchino

 

  1. VON ADAMEK, Marcelo Vieira. Abuso de Minoria em Direito Societário: abuso das posições subjetivas minoritárias. Tese (Doutorado em Direito Comercial). Universidade de São Paulo. 2010.
  2. AMENDOLARA, Leslie. Direito dos Acionistas Minoritários. 2a. ed. São Paulo: Quartier Latan, 2002.
  3. KOMPARATO, Fábio Konder e SALOMÃO FILHO, Calixto. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 5a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

 

 

Todos os direitos reservados – Rodrigo Elian Sanchez Sociedade de Advogados S/S.

 

 

[1] MARTINS, Gustavo Afonso. A relação entre a pessoa jurídica e a LGPD. Consultor Jurídico. Disponível em < https://www.conjur.com.br/2020-set-28/gustavo-martins-relacao-entre-pessoa-juridica-lgpd> . Acesso em 04.jan de 2021.

[2] De forma muito superficial podemos dizer que o distinguishing é a prática de não aplicar dado precedente vinculante por se reconhecer que a situação sub judice (aquela que se está julgando imediatamente) não é semelhante (análogo) aos casos em que foram fixados os precedentes.

[3] TJSP, Agravo de Instrumento nº 2147197-95.2018.8.26.0000, 27ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Des. Relatora Daise Fajardo Nogueira Jacot, d.j. 25 de setembro de 2018.

[4] ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 354 e 355.

[5] VON ADAMEK, Marcelo Vieira. Abuso da Minoria em Direito Societário (abuso das posições subjetivas minoritárias). Tese (Doutorado em Direito Comercial). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo. p. 39.