AQUISIÇÃO DE IMÓVEIS: necessidade de novos avanços nas áreas trabalhista e fiscal, visando a desburocratização das operações imobiliárias.

A operação de compra e venda de imóveis é cercada de assimetria de informação. Se de um lado, o vendedor tem informações mais precisas sobre sua própria situação jurídica e financeira e sobre a situação física e jurídica do imóvel, do outro lado, o comprador não possui essas informações, devendo realizar vasta pesquisa para obtê-las e apesar de todo seu esforço, sempre as obterá de forma incompleta.

As informações, que o comprador poderá obter, serão parciais pois em um país como o Brasil, em que os serviços de registro de protesto são realizados por comarcas[1], que em 2019 somavam 2.702[2], o custo de realizar pesquisa em todas as comarcas de nosso país, torna tal medida inexequível.

 

Por outro lado, o número de tribunais em que se deve realizar pesquisa, também é extenso. Segundo dados do CNJ atualmente existem 90[3] tribunais no Brasil, sendo que na grande maioria deles, é possível emitir certidões[4] através da internet.

 

Não obstante, as dificuldade são de grande monta, não só pelo número de tribunais, como também por alguns, como o TJMG e o TJAC, não disponibilizarem certidões dos distribuidores forenses de primeira instância com alcance estadual, em que se reúnam as informações de todas as comarcas sob a jurisdição de um respectivo tribunal, sendo necessária  a solicitação de uma miríade de certidões em um mesmo tribunal.

 

Vamos imaginar que o vendedor de um imóvel, tenha em face de si, em tramite uma ação e que tal ação tramite perante uma comarca que já residiu, no passado. A informação da existência dessa ação, de maneira geral, só estará disponível no cartório judicial da comarca onde ele residia.

 

Assim, para ter certeza da segurança jurídica da operação, o comprador deveria realizar consultas a diversos cartórios e órgãos públicos, inclusive fora da localidade onde o imóvel de interesse se localiza e incluindo locais em que o vendedor já residiu, no passado.

 

Seja pelo custo de realizar a totalidade das citadas consultas, seja pelo tempo que seria despendido para sua efetivação, ou ainda pela inexequibilidade de tal medida, os potenciais compradores dos imóveis e mesmo as instituições financeiras que os financiam, restringem-se, na grande maioria das vezes, a realizar consultas nos órgãos que guardam uma relação geográfica mais próxima com o imóvel.

 

No cotidiano, se consolidou a praxe foi por se realizar a pesquisa na comarca onde se localiza o imóvel objeto da transação e na comarca onde residem, os vendedores, nos últimos cinco anos.

 

Ou seja, por economicidade, os agentes deixam de trabalhar com a totalidade das informações necessárias para aferir o risco e, consequentemente, o efetivo preço da transação e as consolidam com um “vácuo informacional”, que possibilita, no futuro, o questionamento ou ineficácia da operação.

 

Neste sentido, muitos defendem a necessidade de se adotar a regra da concentração dos atos na matrícula do imóvel para mitigar este “vácuo informacional” e trazer segurança as operações.

 

Através de tal regra, os interessados têm que analisar apenas e tão somente a certidão atualizada da matrícula do imóvel, sendo que qualquer fato que não esteja lá averbado, não vincula o comprador ou adquirente de direitos reais.

 

A adoção deste princípio em sua plenitude, contribuirá para aumento da segurança jurídica dos negócios, assim como para desburocratização dos procedimentos dos negócios imobiliários.

 

Da evolução do entendimento sobre a fraude à execução, nos tribunais e na legislação

 

Em 2006, a Lei Federal nº 11.382, de 2006, alterou o CPC/1973, tendo introduzido o artigo 615-A no diploma processual. Tal artigo possibilitava ao exequente, no ato da distribuição, obter certidão comprobatória do ajuizamento da execução, para fins de averbação no registro de imóveis, registro de veículos ou registro de outros bens sujeitos à penhora ou arresto.

 

Ou seja, passou a ser possível que os credores ao distribuírem execuções, averbassem em bens do devedor a existência da pendência judicial, de forma a dar publicidade e vincular futuros interessados em adquirir referidos bens, em relação à eventual ônus que poderiam vir a recair.

 

De acordo, com tal regra presume-se em fraude à execução a alienação ou oneração de bens efetuada após a averbação (art. 593).

 

Tal alteração legislativa, foi bastante salutar, pois caminhava no sentido da concentração dos atos perante a matrícula imobiliária, sendo que o STJ, com base em tal regra, ainda em 18.3.2009, sumulou sob o n. 375, o seguinte verbete:

 

O reconhecimento da fraude de execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.

 

 

Tal súmula trouxe grande alento as operações imobiliárias, porém sendo persuasiva e não vinculante, a insegurança jurídica permanecia, pois em muitos tribunais o entendimento de que o comprador, deveria proceder à intensa pesquisa em relação ao vendedor e eventuais antecessores, continuava a vigorar.

 

Por outro lado, dúvida remanescia, em relação a aplicação do entendimento sumulado sob o n.° 375 às execuções fiscais, já que existe norma positiva expressa, em sentido contrário (Art. 185 do CTN). Segundo o art. 185 do CTN, se na ocasião da alienação de um bem, o vendedor for devedor de débito fiscal inscrito na dívida ativa e não tendo outros bens para garantir a dívida tributária, a operação será considerada fraudulenta.

 

Tal tema (fraude fiscal na alienação de bens) foi, em 2010, objeto de recurso especial julgado pelo regime dos repetitivos (REsp 1.141.990/PR) com efeitos vinculantes à todo poder judiciário.

 

Ao julgar referido recurso especial (tema 290), o STJ entendeu pela existência de diferença de tratamento entre a fraude civil e a fraude fiscal, tendo sido fixada a seguinte tese:

 

“Se o ato translativo foi praticado a partir de 09.06.2005, data de início da vigência da Lei Complementar n.º 118/2005, basta a efetivação da inscrição em dívida ativa para a configuração da figura da fraude quando se trata de crédito tributário”.

 

 

O entendimento tese como fundamento ser o Código Tributário Nacional (com as alterações trazidas pela Lei Complementar n.º 118/2005), lei especial em relação ao Código de Processo Civil (regra geral). De acordo com o princípio geral de direito Lex specialis derogat legi generali, para as execuções fiscais, o CTN prevalece, sendo afastada a aplicação do CPC.

 

O tema foi novamente submetido ao STJ, em agosto de 2014, quando do julgamento do REsp 956.943/PR, também sob a sistemática dos recursos repetitivo (tema 243), tendo sido fixada tese pela qual, inexistindo registro da penhora na matrícula do imóvel, é do credor o ônus da prova de que o terceiro adquirente tinha conhecimento de demanda capaz de levar o alienante à insolvência, bem como que, presume-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens realizada após averbação referida no dispositivo.

 

A tese fixada no REsp 956.943, é precedente judicial, que uniformiza a aplicação do direito em casos idênticos, devendo ser observado pelos demais juízes, todavia restrito as áreas do direito processual civil e do trabalho. Assim para a área fiscal o entendimento firmado no REsp 1.141.990/PR, continuou ileso.

 

É importante destacar, que a pesquisa fiscal é praticamente inexequível, pois além dos débitos para com a fazenda nacional, o interessado deve proceder à pesquisa perante 26 fazendas estaduais (além da do distrito federal) e perante as 5.568 fazendas municipais[5].

 

Diante deste cenário, ainda bastante complexo e considerando a necessidade de trazer maior segurança jurídica ao mercado imobiliário, em 2015, entrou em vigor a Lei Federal n.°13.097/2015, que em seu artigo 54, estabeleceu não ser possível opor à terceiros de boa-fé, que adquiriram ou receberam em garantia direitos reais sobre o imóvel, situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 (que trata da recuperação judicial).

 

A tal inovação normativa, veio a se somar o artigo 792 do CPC/2015 que entrou em vigor em 18 de março de 2016, tendo também, referendado a impossibilidade de se presumir fraudulenta a operação imobiliária, sem que esteja averbada perante o registro imobiliário a existência de pendência ou pretensão reipersecutória.

 

Ou seja, as regras contidas no art. 54 da Lei Federal n.°13.097/2015, bem como a contida no art. 792 do CPC/2015 visavam simplificar as operações imobiliárias e são antagônicas com a contida no art. 185 do CTN.

 

Porém e conforme já exposto, o STJ, quando do julgamento em 2010 do REsp 1.141.990/PR entendeu que o Código Tributário Nacional é regra especial em relação ao Código de Processo Civil, sendo que a alteração no diploma processual, não terá qualquer efeito modificativo para a área fiscal, ainda regulada pelo art. 185 do Código Tributário Nacional.

 

Porém uma questão pouco abordada ainda é sobre os efeitos da Lei Federal n.°13.097/2015, para a esfera tributária, tema do qual o STJ ainda não se manifestou.

 

Sem embargo, em recente artigo, Eduardo de Arruda Alvim e Rafael Ricardo Gruber[6], defendem a tese de que a regra contida no art. 54 da Lei Federal n.°13.097/2015 é a regra especial e afasta aplicação do art. 185, quando a operação for imobiliária.

 

Ou seja, o art. 54 da Lei Federal n.°13.097/2015 será aplicável tão somente aos casos em que a transação que se pretenda declarar fraudulenta, seja imobiliária, sendo tal regra aplicável tanto em processo cível comum como no processo de execução fiscal.

 

Porém e não se tratando de transação que envolva bem imóvel, é aplicável a regra do art. 792 do CPC/2015 para as execuções comuns e a do art. 185 do CTN aos processos de execução fiscal.

 

O argumento nos parece o mais acertado e ao mesmo nos filiamos, considerando que na exposição de motivos apresentada quando da tramitação legislativa do texto que resultou na Lei Federal n.°13.097/2015, é apontando que a lei tem como escopo desburocratizar os procedimentos dos negócios imobiliários, em geral, e fomentar a concessão de crédito, com redução de custos e imprimindo celeridade aos negócios.

 

Nesta toada é evidente que se trata de norma especial que trata exclusivamente de negócios imobiliários e por ser posterior à regra contida no art. 185 do CTN, derroga a mesma no que conflitarem.

 

Seria, contudo, oportuno uma nova provocação ao STJ, de forma que seja declarado estar superado o entendimento fixado no REsp 1.141.990/PR, visando segurança jurídica.

 

Outro campo, que não podemos esquecer é o da justiça especializada trabalhista, em que à despeito dos novos marcos legais, em reiteradas decisões recentes, não tem sido observada as regras contidas no art. 54 da Lei Federal n.°13.097/2015 e 792 do CPC/2015, matrícula, razão pela qual, os interessados em adquirir imóvel, continuam a realizar pesquisa nos distribuidores da Justiça do trabalho, para verificar se o vendedor é réu em alguma reclamação trabalhista, e se tem outros bens para responder à eventual condenação.

 

A necessidade da evolução da interpretação jurisdicional à luz dos novos diplomas legais é fundamental para que a simplificação e segurança jurídica possam se consolidar e trazer respaldo adequado aos agentes econômicos.

 

Rodrigo Elian Sanchez

 

[1] A comarca corresponde a divisão territorial estabelecida pelo poder judiciário, em que o juiz de 1ª grau irá exercer sua jurisdição. A comarca pode abranger um ou mais municípios, dependendo do número de habitantes e de eleitores, do movimento forense e da extensão territorial dos municípios do estado, entre outros aspectos.

[2] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2019. Brasília: 2019. p. 219.Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em 15 maio de 2020.

[3] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cnj-apresenta-justica-em-numeros-2018-com-dados-dos-90-tribunais/. Acesso em 15 maio de 2020.

[4] No Tribunal de Justiça do Paraná e nos Tribunais Regionais do Trabalho do Rio de Janeiro (TRT 1) as emissão das certidões são físicas e necessitam ser providenciadas presencialmente.

[5] Dados disponibilizados em 18.05.2020 pelo IBGE. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27713-ibge-atualiza-lista-de-municipios-distritos-e-subdistritos-municipais-do-pais-2. Acesso 18 maio de 2020.

[6] ALVIM, Eduardo Arruda; GRUBER, Rafael Ricardo. Segurança jurídica dos negócios imobiliários versus fraude à execução: ônus dos credores e ônus dos adquirentes de bens no direito civil e tributário brasileiro. Revista de Processo. Vol. 291.ano 44. P. 101-134. São Paulo: Ed. RT, maio 2019.