AQUISIÇÃO DE IMÓVEIS: E A ATUAL JURISPRUDÊNCIA TRABALHISTA

Em artigo anterior, tratamos da evolução do entendimento sobre a fraude à execução nas operações imobiliárias e o progressivo abandono da presunção da ocorrência da fraude, quando na matrícula do imóvel estiver ausente averbação de existência de pendência judicial.

A evolução legislativa e jurisprudencial (na área cível especialmente) levou ao abandono, para bens sujeitos à registro público, da regra pela qual se considera fraudulenta a alienação quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência.

 

Tal evolução se cristalizou quando o STJ, ainda em 18.3.2009, sumulou sob o n. 375, o seguinte verbete:

 

“O reconhecimento da fraude de execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.

 

Tal entendimento pressupõe que apenas o registro de constrição ou averbação de existência de pendência judicial, faz supor que o adquirente do imóvel ou direito real, tem conhecimento da existência de situação que possa vir a afetar a transação e, na ausência de informação perante o registro imobiliário, se pressupõe que o adquirente está de boa-fé, sendo ônus de quem afirma que a transação imobiliária foi fraudulenta comprovar tais alegações.

 

Tal súmula é persuasiva e destituída de força vinculante, porém sendo proferida pelo tribunal que tem a última palavra na interpretação do direito federal, bastante significativa.

 

Em agosto de 2014, novamente o STJ, quando do julgamento do REsp 956.943/PR, sob a sistemática dos recursos repetitivo (tema 243), fixou tese pela qual, inexistindo registro da penhora na matrícula do imóvel, é do credor o ônus da prova de que o terceiro adquirente tinha conhecimento de demanda capaz de levar o alienante à insolvência, bem como que, presume-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens realizada após averbação referida no dispositivo.

 

A tese fixada no REsp 956.943, é precedente judicial que uniformizou a aplicação do direito em casos idênticos e com força vinculante, devendo ser observada pelos demais juízes, todavia restrita as áreas do direito processual civil e do trabalho.

 

Para além de tais avanços na jurisprudência e considerando a necessidade de trazer ainda maior segurança jurídica ao mercado imobiliário, em 2015, entrou em vigor a Lei Federal n.°13.097/2015, que em seu artigo 54, estabeleceu não ser possível opor à terceiros de boa-fé, que adquiriram ou receberam em garantia direitos reais sobre o imóvel, situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção.

 

Além desta inovação normativa, outro diploma legal, o Código de Processo Civil de 2015, ao introduzir a norma do artigo 792, que entrou em vigor em 18 de março de 2016, também, referendou a impossibilidade de se presumir fraudulenta a operação imobiliária, sem que esteja averbada perante o registro imobiliário a existência de pendência ou pretensão reipersecutória.

 

A priori e sendo a regra contida no art. 54 da Lei Federal n.°13.097/2015, regra de direito material que regula o setor imobiliário, tem aplicação irrestrita tanto ao processo civil, como ao processo trabalhista e fiscal.

 

Por outro lado e em razão da CLT não trazer regras específicas para tratar da fraude à execução, se faz necessária a aplicação subsidiária do CPC/2015, em especial seu artigo 792. Porém e na prática, a justiça trabalhista não encampou, de imediato, como valor, a regra da concentração dos atos na matrícula do imóvel.

É este cenário que pretendemos analisar neste artigo, sendo que em pesquisa das decisões proferidas pela justiça trabalhista, verificamos que em muitos julgados, se continua a considerar fraudulenta a alienação quando, ao tempo dela, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência (TRT 2° região, 2° turma, Agravo de petição nº 1001301-22.2017.5.02.0443, Des. Rel. Sônia Maria Forster do Amaral; TRT 2° Região, 3° turma, Agravo de petição nº 1001655-50.2018.5.02.0075, Des. Rel. Liane Martins Casarin).

 

Tais julgados se fundamentam no art. 792, IV, do CPC/2015 que é aplicável apenas e tão somente à bens não sujeitos à registros públicos, sendo evidente a ausência de subsunção de operação imobiliária à tal regra legal.

 

Os bens imóveis são sujeitos a registro público, sendo, inclusive, que os direitos reais (propriedade; superfície; servidões; usufruto etc.) só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (at. 1.227 do Código Civil).

 

Ou seja, às operações imobiliárias se aplicam exclusivamente as normas contidas nos incisos I, II e III do art. 792, CPC/2015, pelas quais é considerada em fraude à execução a alienação quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público; quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, ou hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude.

 

O Código de Processo Civil atribuiu, ao adquirente, apenas na operação de aquisição de bem não sujeito a registro, o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem. (art. 792, §2° CPC/2015).

 

Porém e quando o bem é sujeito à registro público, ao adquirente apenas reside o dever de analisar as informações constantes no registro e no caso de direitos reais, as constantes na matrícula do imóvel.

 

Por outro lado, devemos enaltecer que diversos julgados trabalhistas já se perfilam em consonância com as atuais normas que regulam as operações imobiliárias, sendo que nos permitimos transcrever ementa de acórdão, representativo desta evolução:

 

FRAUDE À EXECUÇÃO. NECESSIDADE DE AVERBAÇÃO DA PENHORA NA MATRÍCULA DO IMÓVEL. ART. 844 DO CPC/2015. SÚMULA 375 DO STJ. O registro da penhora é imperioso para que o adquirente possa tomar conhecimento sobre a situação do bem que pretende comprar, uma vez que o registro dá publicidade e produz eficácia erga omnes, conforme artigo 659, § 4º do CPC (CPC/2015, art. 844). A preexistência de dívida inscrita ou de execução, por si, não constitui o ônus erga omnes, efeito decorrente da publicidade do registro público. Aquele que adquire bem não regularmente penhorado, não fica sujeito à fraude in re ipsa. Hodiernamente, a lei exige o registro da penhora quando imóvel o bem transcrito. A exigência visa à proteção do terceiro de boa-fé. E altera a tradicional concepção da fraude de execução, razão pela qual, somente a alienação posterior ao registro é que caracteriza a figura em exame. Não se pode argumentar que a execução em si seja uma demanda capaz de reduzir o devedor à insolvência e, por isso, a hipótese estaria enquadrada no inciso II do art. 593 do (CPC/2015, 792, IV). Assim, não se pode mais afirmar que quem compra bem penhorado o faz em fraude de execução. É preciso verificar se a aquisição precedeu ou sucedeu o registro da penhora. Não é por outro motivo que o C. STJ editou a Súmula 375, de seguinte teor. (TRT 2° Região, Agravo de petição nº 1000735-33.2018.5.02.0057, turma, Des. Relator: Ivani Contini Bramante) ”.

 

Não obstante, a corrente pela qual o reconhecimento da fraude à execução em operações imobiliárias se presume quando, da ocasião da disposição de direitos reais, existir demanda capaz de reduzir o devedor à insolvência, continua a ser bastante forte na justiça do trabalho.

 

Por este motivo, os operadores do direito continuam a manter a praxe de realizar a pesquisa nos distribuidores da justiça do trabalho, na comarca onde se localiza o imóvel objeto da transação e na comarca onde residem os vendedores.

 

Tais pesquisas são realizadas para verificar a existência de demandas em que o vendedor esteja no polo passivo de reclamação e que possam levá-lo, eventualmente, à insolvência.

 

Tal análise é, além de onerosa, bastante complexa, senão sujeita a subjetividades. Ao adquirente caberia verificar se o vendedor consta no polo passivo de eventuais reclamações trabalhistas e analisar o valor da pretensão do reclamante.

 

Em um exercício hipotético, deveria cogitar a possibilidade de o reclamante ter êxito em todos os seus pedidos e apurar se o reclamado após a alienação do imóvel, remanescerá com outros bens cujo valor seja suficiente para quitar a obrigação trabalhista.

 

Ao adquirente, tal análise hipotética deve ser feita no momento instantâneo da aquisição, nada influenciando se após a conclusão de tal transação imobiliária, o vendedor alienar os seus demais bens remanescentes, restando insolvente para quitar a eventual condenação trabalhista.

 

Entretanto, a própria avaliação dos bens que remanescerão na titularidade do vendedor, é questão que traz insegurança e custos. Para aumentar a certeza em relação aos valores de referidos bens, deverão as partes procederem à avaliação profissional? Tal avaliação particular, entretanto, não vincula o juízo que futuramente analisará se a venda do imóvel foi ou não fraudulenta.

 

Ou seja, este “vácuo informacional” possibilita, no futuro, o questionamento ou até a declaração de ineficácia da operação e, ainda, cria burocratização dos negócios imobiliários.

 

Ponto importante a se observar é que no direito do trabalho, em geral, é adotada a chamada “teoria menor” da desconsideração da personalidade jurídica, pela qual independentemente da existência de fraude ou confusão patrimonial, o sócio responde subsidiariamente pelo pagamento das verbas trabalhistas.

 

Vamos imaginar a hipótese de o reclamante ter saído vitorioso em uma reclamação, cuja sentença já tenha transitado em julgado e a reclamada, após ter sido intimada, não tenha quitado a condenação. Neste cenário, os sócios da reclamada podem ser chamados a integrar a lide e responder com seu patrimonial pessoal pelo pagamento de tais verbas.

 

Segundo a norma contida no § 3º do art. 792, CPC/2015, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.

 

Ou seja, as alienações de bens ocorridas antes que o sócio seja formalmente citado para integrar o processo trabalhista (inclusive nos casos de desconsideração), não podem ser consideradas fraudulentas.

 

Lembramos que a sociedade empresária tem personalidade jurídica distinta de seus sócios.

 

Tal regra legal, tem sido observada pela justiça trabalhista de forma pacífica. Neste sentido:

 

“EXECUÇÃO. EMBARGOS DE TERCEIROS. FRAUDE À EXECUÇÃO. INOCORRÊNCIA. ALIENAÇÃO DE BEM IMÓVEL DE PROPRIEDADE DE SÓCIA DA EMPRESA EXECUTADA ANTES DO REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO EM SEU DESFAVOR. CONDIÇÃO DE ADQUIRENTE DE BOA-FÉ DEMONSTRADA. PENHORA INSUBSISTENTE. […]é necessário perquirir se o terceiro adquirente detinha conhecimento da pendência do processo sobre o bem alienado ou se a demanda era capaz de levar o alienante à insolvência” (E-ED-RR-154900-19.2004.5.15.0046, Relator Ministro José Roberto Freire Pimenta, DEJT de 26.05.2017). 4. No caso, ainda que os terceiros embargantes tivessem realizado a extração de certidões em nome da pessoa física vendedora do bem imóvel, não teriam conhecimento da presente execução. Com efeito, conforme já destacado, à época da venda do imóvel “a execução ainda não se havia voltado contra Maria Lucimar dos Santos”. 5. Nesse contexto, resta demonstrada a condição dos terceiros embargantes de adquirentes de boa-fé, sendo insubsistente a penhora. Recurso de revista conhecido e provido” (TST, RR-1342-58.2015.5.02.0028, 1ª Turma, Ministro Hugo Carlos Scheuermann, DEJT 19/06/2020) ”.

 

Tal entendimento não é inovador, pois segue a linha de raciocínio da aplicação do conceito de que será fraudulenta a alienação quando, ao tempo dela, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência, aplicável apenas em relação aos bens não sujeitos à registro público.

 

Entretanto, já é um avanço ter este entendimento pacificado, pois tempos atrás era comum que, além da complexidade de exigir diversas certidões pessoais dos vendedores, se exigisse, também, certidões das empresas das quais o vendedor fosse sócio, de modo a avaliar uma possível desconsideração da personalidade jurídica e os efeitos em relação à venda de um imóvel realizada pelo sócio.

 

Evidente a burocratização e insegurança das operações imobiliárias, se sujeitos à tão complexa análise.

 

Por outro lado, não poderíamos esquecer da Lei Federal nº 12.440/2011 que alterou a CLT e criou a Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas – CNDT.

 

A CNDT traz as informações do Banco Nacional de Devedores Trabalhistas – BNDT, onde estão centralizadas informações de todos os tribunais trabalhistas do país e pela qual é possível verificar se alguém é devedor da justiça do trabalho.

 

As dívidas registradas no BNDT incluem as obrigações trabalhistas, de fazer ou de pagar, impostas por sentença, os acordos trabalhistas homologados pelo juiz e não cumpridos, os acordos realizados perante as Comissões de Conciliação Prévia (Lei nº 9958/2000) e não cumpridos, os termos de ajuste de conduta firmados com o Ministério Público do Trabalho (Lei nº 9958/2000) e não cumpridos, as custas processuais, emolumentos, multas, honorários de perito e demais despesas oriundas dos processos trabalhistas e não adimplidas.

 

Ou seja, tal certidão, ao invés de informar se existe ação em face de uma certa pessoa física ou jurídica, informa se o pesquisado foi condenado em processo trabalhista e que tenha se esgotado a fase de conhecimento, sem que exista recurso dotado de efeito suspensivo. A certidão além de positiva ou negativa poderá ser positiva com efeito de negativa, nos casos em que o devedor, intimado para o cumprimento da obrigação em execução definitiva, houver garantido o juízo com depósito, por meio de bens suficientes à satisfação do débito ou tiver em seu favor decisão judicial que suspenda a exigibilidade do crédito.

 

Tal certidão é fundamental para análise da segurança da transação imobiliária, pois se o vendedor consta como devedor da justiça do trabalho, a possibilidade de a operação ser futuramente considerada fraudulenta, de acordo com a posição, atualmente, predominante nos tribunais trabalhistas, é grande.

 

Não obstante, sob viés doutrinário e de acordo com as normas legais em vigência, em especial a Lei Federal n.°13.097/2015 e incisos I, II e III do art. 792, CPC/2015, não existe outra solução senão aplicar, também na área trabalhista,  a regra da concentração dos atos na matrícula, sendo ilegal a continuidade de aplicação da regra contida no inciso IV, art. 792, CPC/2015, pela qual se impõe ao interessado em adquirir imóvel o ônus de solicitar uma miríade de certidões (distribuidores forenses, CNDT, etc.), realização de complexas análises, pelo qual se inverte a presunção da boa-fé e obstaculiza o crescimento do mercado imobiliário em nosso país.

Rodrigo Elian Sanchez