ANÁLISE DA DECISÃO DO STJ SOBRE LOCAÇÃO DE IMÓVEIS ATRAVÉS DE APLICATIVOS (AIRBNB)

Conforme abordamos em artigos anteriores, em razão da alta rotatividade e curtos períodos de locação via AIRBNB, surgiram conflitos entre condomínios e proprietários de imóveis que locavam suas unidades através do aplicativo.

A questão foi então debatida pelo STJ, em um caso específico e sem efeito vinculante (REsp 1819075/RS), mas que acreditamos, possa influenciar os julgamentos pelos demais Tribunais do país. O caso específico tratou de três questões centrais: (a) se a locação ou sublocação de imóveis pelo período de até 90 dias, a chamada locação temporária prevista em lei, retira a característica residencial do imóvel; (b) se há limite para o direito de propriedade ou se o proprietário pode dar a destinação que quiser ao seu imóvel; (c) se há diferença entre a hospedagem comercial e a locação temporária de imóvel residencial para fins de hospedagem.

 

O Superior Tribunal de Justiça, por três votos a um, decidiu que o condomínio residencial pode proibir que suas unidades sejam disponibilizadas para locação através do Airbnb, conforme ementa abaixo transcrita:

 

“DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. CONDOMÍNIO EDILÍCIO RESIDENCIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER. LOCAÇÃO FRACIONADA DE IMÓVEL PARA PESSOAS SEM VÍNCULO ENTRE SI, POR CURTOS PERÍODOS. CONTRATAÇÕES CONCOMITANTES, INDEPENDENTES E INFORMAIS, POR PRAZOS VARIADOS. OFERTA POR MEIO DE PLATAFORMAS DIGITAIS ESPECIALIZADAS DIVERSAS. HOSPEDAGEM ATÍPICA. USO NÃO RESIDENCIAL DA UNIDADE CONDOMINIAL. ALTA ROTATIVIDADE, COM POTENCIAL AMEAÇA À SEGURANÇA, AO SOSSEGO E À SAÚDE DOS CONDÔMINOS. CONTRARIEDADE À CONVENÇÃO DE CONDOMÍNIO QUE PREVÊ DESTINAÇÃO RESIDENCIAL. RECURSO IMPROVIDO.

  1. Os conceitos de domicílio e residência (CC/2002, arts. 70 a 78), centrados na ideia de permanência e habitualidade, não se coadunam com as características de transitoriedade, eventualidade e temporariedade efêmera, presentes na hospedagem, particularmente naqueles moldes anunciados por meio de plataformas digitais de hospedagem.
  2. Na hipótese, tem-se um contrato atípico de hospedagem, que se equipara à nova modalidade surgida nos dias atuais, marcados pelos influxos da avançada tecnologia e pelas facilidades de comunicação e acesso proporcionadas pela rede mundial da internet, e que se vem tornando bastante popular, de um lado, como forma de incremento ou complementação de renda de senhorios, e, de outro, de obtenção, por viajantes e outros interessados, de acolhida e abrigo de reduzido custo.
  3. Trata-se de modalidade singela e inovadora de hospedagem de pessoas, sem vínculo entre si, em ambientes físicos de estrutura típica residencial familiar, exercida sem inerente profissionalismo por aquele que atua na produção desse serviço para os interessados, sendo a atividade comumente anunciada por meio de plataformas digitais variadas. As ofertas são feitas por proprietários ou possuidores de imóveis de padrão residencial, dotados de espaços ociosos, aptos ou adaptados para acomodar, com certa privacidade e limitado conforto, o interessado, atendendo, geralmente, à demanda de pessoas menos exigentes, como jovens estudantes ou viajantes, estes por motivação turística ou laboral, atraídos pelos baixos preços cobrados.
  4. Embora aparentemente lícita, essa peculiar recente forma de hospedagem não encontra, ainda, clara definição doutrinária, nem tem legislação reguladora no Brasil, e, registre-se, não se confunde com aquelas espécies tradicionais de locação, regidas pela Lei 8.245/91, nem mesmo com aquela menos antiga, genericamente denominada de aluguel por temporada (art. 48 da Lei de Locações).
  5. Diferentemente do caso sob exame, a locação por temporada não prevê aluguel informal e fracionado de quartos existentes num imóvel para hospedagem de distintas pessoas estranhas entre si, mas sim a locação plena e formalizada de imóvel adequado a servir de residência temporária para determinado locatário e, por óbvio, seus familiares ou amigos, por prazo não superior a noventa dias.
  6. Tampouco a nova modalidade de hospedagem se enquadra dentre os usuais tipos de hospedagem ofertados, de modo formal e profissionalizado, por hotéis, pousadas, hospedarias, motéis e outros estabelecimentos da rede tradicional provisória de alojamento, conforto e variados serviços à clientela, regida pela Lei 11.771/2008.
  7. O direito de o proprietário condômino usar, gozar e dispor livremente do seu bem imóvel, nos termos dos arts. 1.228 e 1.335 do Código Civil de 2002 e 19 da Lei 4.591/64, deve harmonizar-se com os direitos relativos à segurança, ao sossego e à saúde das demais múltiplas propriedades abrangidas no Condomínio, de acordo com as razoáveis limitações aprovadas pela maioria de condôminos, pois são limitações concernentes à natureza da propriedade privada em regime de condomínio edilício.
  8. O Código Civil, em seus arts. 1.333 e 1.334, concede autonomia e força normativa à convenção de condomínio regularmente aprovada e registrada no Cartório de Registro de Imóveis competente. Portanto, existindo na Convenção de Condomínio regra impondo destinação residencial, mostra-se indevido o uso de unidades particulares que, por sua natureza, implique o desvirtuamento daquela finalidade (CC/2002, arts. 1.332, III, e 1.336, IV).
  9. Não obstante, ressalva-se a possibilidade de os próprios condôminos de um condomínio edilício de fim residencial deliberarem em assembleia, por maioria qualificada (de dois terços das frações ideais), permitir a utilização das unidades condominiais para fins de hospedagem atípica, por intermédio de plataformas digitais ou outra modalidade de oferta, ampliando o uso para além do estritamente residencial e, posteriormente, querendo, incorporarem essa modificação à Convenção do Condomínio.
  10. Recurso especial desprovido.

 

De início, importante destacar que, o caso em julgamento foi muito peculiar: os proprietários de duas unidades no condomínio realizaram uma “locação fracionada do imóvel para pessoas sem vínculo entre si, por curtos períodos”. As salas dos apartamentos foram divididas por divisórias de escritório, para criar mais quartos, que eram alugados para pessoas diferentes e sem qualquer vínculo entre si.

 

Para o Tribunal Gaúcho, no julgamento do recurso de apelação, esta situação caracterizou contrato de hospedagem, atividade comercial proibida pela convenção de condomínio.

 

O STJ, ao julgar o recurso especial dos proprietários, manteve o entendimento da instância ordinária. Segundo o voto vencedor, a solução da lide passa pela análise dos conceitos de residência e domicílio, que nos termos da Lei Civil, estão ligados às concepções de permanência habitual e de definitividade anímica.

 

Segundo a Corte Superior, portanto, “os conceitos de domicílio e residência (CC/2002, arts. 70 a 78), centrados na ideia de permanência e habitualidade, não se coadunam com as características de transitoriedade, eventualidade e temporariedade efêmera, presentes na hospedagem, particularmente naqueles moldes anunciados por meio de plataformas digitais de hospedagem. ”

 

Para o STJ, a admissão de terceiros, estranhos entre si, em cômodos existentes nos apartamentos e por curtos períodos, com considerável rotatividade de ocupantes, não se confunde com as espécies tradicionais de locação, nem mesmo com o denominado aluguel por temporada e nem com as usuais modalidades de hospedagem, de modo profissional, realizadas por hotéis, hospedarias, etc.

 

Trata-se, segundo o voto vencedor, de verdadeiro contrato atípico de hospedagem, que ainda não possui regulamentação no ordenamento jurídico brasileiro. Neste ponto, concluiu a Corte Superior que a hipótese dos autos se subsome aos arts. 1.332 a 1.336, do CC, que, “por um lado, reconhecem ao proprietário o direito de usar, fruir e dispor livremente de sua unidade e, de outro, impõem o dever de observar sua destinação e usá-la de maneira não abusiva, com respeito à Convenção Condominial…”, ao que a Lei Civil concedeu autonomia e força normativa.

 

Assim, uma vez que a Convenção de Condomínio possui regra que impõe destinação residencial às unidades autônomas, procede sua pretensão de vedar o uso destas unidades para fins de hospedagem remunerada, com múltipla e concomitante locação de aposentos existentes nos apartamentos, a diferentes pessoas, por curta temporada.

 

Ao final, o STJ faz importante ressalva – e que entendemos ser relevante destacar a nossos clientes e parceiros – no sentido de que caberia aos condomínios, através de assembleia (com votação de dois terços das frações ideais), deliberar se permite ou não a utilização das unidades para fins de hospedagem atípica, por intermédio de plataformas digitais.

 

Referido julgamento ainda não foi encerrado, pois em 03/06/2021, o AIRBNB, na qualidade de assistente, opôs embargos de declaração para sanar contradições e erros de fato que entendeu haver no acórdão, principalmente quanto ao reconhecimento da possibilidade dos condôminos, reunidos em assembleia geral, autorizarem ou vetarem a locação nos moldes discutidos, uma vez que esta questão não teria sido suscitada no recurso.

 

Diante dos embargos de declaração, nossa equipe seguirá monitorando este processo a fim de que atualizar os clientes e parceiros assim que for proferida nova decisão.

 

Feita esta análise, é importante mencionar que, em recente matéria jornalística, publicada em 30/02/2021[1], o CEO e cofundador do Airbnb – Brian Chesky -, afirmou que o futuro do Airbnb inclui ‘morar’, e não apenas viajar, destacando que a pandemia de Covid-19 precipitou “a mudança mais profunda nas viagens desde o avião”.

 

Portanto, em um momento em que o mundo todo tenta se recuperar de uma severa crise econômica causada pela Covid-19 e, considerando o enorme impacto econômico que este tipo de negócio tem, com sua capacidade – demonstrada – de gerar renda aos cidadãos, bem como a necessidade de conferir segurança jurídica aos proprietários das unidades, ao condomínio edilício e aos próprios usuários dessa modalidade, é fácil concluir que a regulamentação da matéria é essencial.

 

Neste sentido, se encontra em trâmite na Câmara dos Deputados o projeto de lei n. 2.474/2019, de autoria do Senador Angelo Coronel, que propõe a alteração da Lei n. 8.245, de 18 de outubro de 1991, “para disciplinar a locação de imóveis residenciais por temporada por meio de plataformas de intermediação ou no âmbito da economia compartilhada“, com a inserção do art. 50-A ao referido estatuto legal.

 

Marcelo Barretto Ferreira da Silva Filho

[1] https://www.moneytimes.com.br/ceo-diz-que-futuro-do-airbnb-inclui-morar-nao-apenas-viajar/