A TEORIA DA VIDA ÚTIL NA CONSTRUÇÃO CIVIL E OS PRAZOS DE RECLAMAÇÃO DE VÍCIOS CONSTRUTIVOS.

A Teoria da Vida Útil refere-se ao período durante o qual um bem (neste caso, uma obra de construção civil) deve manter suas condições de uso e segurança, conforme as expectativas estabelecidas no momento da sua entrega. Trata-se, portanto, de um conceito deveras importante na construção civil, quando falamos em garantir a durabilidade das obras e dos materiais.

 

Se aplicássemos a Teoria da Vida Útil em relação a um simples produto, como, por exemplo, uma televisão ou um telefone celular, o trabalho de definir o período durante o qual ele deve manter suas condições seria uma tarefa relativamente simples.

 

No entanto, no universo de itens que compõem uma obra de construção civil, a questão se torna mais complexa, pois há inúmeros materiais cuja vida útil tem expectativa de durabilidade maior, e outros tantos cuja durabilidade é menor: logicamente espera-se uma vida útil muitíssimo maior da parte estrutural de uma construção (vigas, colunas, lajes, fundações etc.) do que se espera de outros itens, como motor da piscina, rejuntes etc.

 

Justamente por isso, a Teoria da Vida Útil, ao ser aplicada à construção civil, deve fazer uma distinção entre esses itens para fins de garantia legal: nem sempre será aplicável o prazo de 5 (cinco) anos – previsto no art. 27 do Código de Defesa do Consumidor e no art. 618 do Código Civil – pois tal prazo seria deveras exíguo para vícios estruturais (cuja expectativa de durabilidade deve ser de aproximadamente 30 anos), mas, por outro lado, deveras longo para, por exemplo, a pintura da fachada ou a troca de um rejunte de área externa, sujeitos à agressiva ação do tempo.

 

Nestes casos, o que se esperaria, mas que, infelizmente, não temos visto na jurisprudência pátria, é que os vícios fossem divididos e analisados de forma técnica, tomando como base, por exemplo, as normas da ABNT, que tratam dos requisitos para a gestão e manutenção de edificações (NBR 5674/2012), assim como a que estabelece os requisitos e critérios de desempenho que se aplicam às edificações como um todo integrado, bem como de forma isolada por sistemas específicos (NBR 15575-1/2013), e que estabelece prazos mínimos de desempenho (neste último caso, desde que observadas a manutenção e o uso corretos. logicamente).

 

Mais recentemente, temos ainda a NBR 17170/2022 que traz conceitos, referências técnicas, requisitos, diretrizes e procedimentos para a definição das garantias das edificações, ou, como dito acima, de suas partes, levando em consideração os sistemas, componentes e equipamentos contidos na obra de construção civil como um todo.

 

Percebe-se que a aplicação da Teoria da Vida Útil à construção civil permitiria que as partes envolvidas (tanto os construtores quanto os consumidores e prestadores de serviço) pudessem estabelecer de forma técnica e precisa as expectativas de durabilidade da obra ao longo do tempo, e com isso, ter melhor horizonte para provisionar tanto seus direitos quanto responsabilidades.

 

No que se refere aos prazos para reclamar, é conveniente esclarecer, de antemão, que os vícios se subdividem em aparentes e ocultos, sendo aqueles os de fácil constatação (v.g., pintura, vidro quebrado, piso trincado etc.) e estes os não verificáveis à primeira vista ou cuja identificação pode levar tempo (v.g., problema na impermeabilização, problema na rede elétrica etc.).

 

No Código de Defesa do Consumidor, os vícios aparentes são tratados no art. 26, II, §1º, que estabelece que o prazo para reclamação é de 90 dias a partir da entrega do imóvel (entrega das chaves). Após esse prazo, o consumidor perde o direito de reclamar o reparo perante a construtora:

 

“Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em: II – noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis. § 1° Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços.”

 

Já com relação aos vícios ocultos, o CDC, em seu art. 26, § 3º, estabelece que o prazo para reclamação também é de 90 dias, porém, contados apenas a partir do momento em que ficar evidenciado o defeito. Neste caso, o consumidor deve reclamar o reparo à construtora de maneira formal, se possível emitindo um laudo pericial, com vistas a registrar que o defeito restou evidenciado.

 

“§ 3° Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito.”

 

Outros dois pontos importantes a serem destacados com relação aos prazos são: (i) as reclamações desses vícios, pelo art. 26, sejam aparentes ou ocultos, devem mirar a sua reparação e não a resolução do contrato; (ii) esses prazos são decadenciais, ou seja, se o vício não for reclamado dentro dele, o consumidor perde o direito.

 

Cabe apontar, também, o vício construtivo causado por fato do produto, ou seja, por acidentes causados por algum defeito. Como exemplo, citamos uma janela que, por estar mal instalada, venha a cair e machucar alguém. Neste caso, o CDC prevê, em seu art. 27, o prazo de 5 (cinco) anos, “iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria”.

 

“Art. 27. Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria.”

 

Por outro lado, o Código Civil trata da questão dos vícios redibitórios em seu art. 441 e seguintes, estabelecendo que o adquirente poderá enjeitar a coisa (no caso, o imóvel) “por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor”.

 

“Art. 441. A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor.”

 

A regra geral do art. 441 do CC permite sua aplicação para resolução do contrato para os casos de vícios de maior gravidade que tornem a coisa imprópria, como, por exemplo, uma questão estrutural. Porém, se o vício for de menor gravidade, que comporte reparação (como o refazimento de uma parede ou de uma impermeabilização), pode-se aplicar também o disposto no art. 445 do CC, que permite “o abatimento no preço”:

 

“Art. 445. O adquirente decai do direito de obter a redibição ou abatimento no preço no prazo de trinta dias se a coisa for móvel, e de um ano se for imóvel, contado da entrega efetiva; se já estava na posse, o prazo conta-se da alienação, reduzido à metade. § 1º Quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, o prazo contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o prazo máximo de cento e oitenta dias, em se tratando de bens móveis; e de um ano, para os imóveis.”

 

O Código Civil também trata da questão no Capítulo VIII (da Empreitada) e estabelece em seu art. 618 que o prazo de reclamação para resolução do contrato é de 5 anos.

 

Tal prazo foi historicamente eleito pela jurisprudência como prazo de “garantia legal mínima” da construção civil, pelo qual as construtoras respondem por vícios construtivos em geral. Abre-se aqui um parêntese para esclarecer que o parágrafo único do art. 618 estabelece, para o dono da obra, um prazo decadencial de 180 dias para ajuizar a ação de resolução do contrato, contados de sua constatação:

 

“Art. 618. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo.

Parágrafo único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito.”

 

Cabe destacar que, sendo uma relação de consumo, o consumidor poderá reclamar os vícios ocultos e aparentes no prazo de 90 dias (conforme visto acima), mas, mesmo ultrapassado esse prazo, ele poderá se valer das disposições legais do Código Civil, que, como visto, estabelece prazo maior de 5 (cinco) anos contados da constatação do vício.

 

Por outro lado, e quando não se tratar de resolução contratual (mas de direito à indenização ou de obrigação de reparar o vício), há entendimento jurisprudencial dominante, tanto no STJ quanto no TJSP, no sentido de que deve ser aplicado o prazo geral prescricional previsto no Código Civil (atualmente, de 10 anos, conforme art. 205 do CC):

 

“DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS E COMPENSAÇÃO DE DANOS MORAIS. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. DEFEITOS APARENTES DA OBRA. PRETENSÃO DE REEXECUÇÃO DO CONTRATO E DE REDIBIÇÃO. PRAZO DECADENCIAL. APLICABILIDADE. PRETENSÃO INDENIZATÓRIA. SUJEIÇÃO À PRESCRIÇÃO. PRAZO DECENAL. ART. 205 DO CÓDIGO CIVIL. 1. Ação de obrigação de fazer cumulada com reparação de danos materiais e compensação de danos morais. 2. Ação ajuizada em 19/07/2011. Recurso especial concluso ao gabinete em 08/01/2018. Julgamento: CPC/2015. 3. O propósito recursal é o afastamento da prejudicial de decadência e prescrição em relação ao pedido de obrigação de fazer e de indenização decorrentes dos vícios de qualidade e quantidade no imóvel adquirido pelo consumidor. 4. É de 90 (noventa) dias o prazo para o consumidor reclamar por vícios aparentes ou de fácil constatação no imóvel por si adquirido, contado a partir da efetiva entrega do bem (art. 26, II e § 1º, do CDC). 5. No referido prazo decadencial, pode o consumidor exigir qualquer das alternativas previstas no art. 20 do CDC, a saber: a reexecução dos serviços, a restituição imediata da quantia paga ou o abatimento proporcional do preço. Cuida-se de verdadeiro direito potestativo do consumidor, cuja tutela se dá mediante as denominadas ações constitutivas, positivas ou negativas. 6. Quando, porém, a pretensão do consumidor é de natureza indenizatória (isto é, de ser ressarcido pelo prejuízo decorrente dos vícios do imóvel) não há incidência de prazo decadencial. A ação, tipicamente condenatória, sujeita-se a prazo de prescrição. 7. À falta de prazo específico no CDC que regule a pretensão de indenização por inadimplemento contratual, deve incidir o prazo geral decenal previsto no art. 205 do CC/02, o qual corresponde ao prazo vintenário de que trata a Súmula 194/STJ, aprovada ainda na vigência do Código Civil de 1916 (“Prescreve em vinte anos a ação para obter, do construtor, indenização por defeitos na obra”). 8. Recurso especial conhecido e parcialmente provido. (REsp 1.721.694/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 03/09/2019). (destaques nossos)

 

Conclusão:

 

Como vimos, a Teoria da Vida Útil aplicada à construção civil permite maior clareza tanto para as construtoras, em relação às suas obrigações e responsabilidades, quanto para os consumidores e adquirentes, em relação aos deveres de manutenção e direitos relativos à garantia e durabilidade, sendo as regras da ABNT o mais adequado aferir a durabilidade e segurança das construções, bem como para avaliar se os vícios ou defeitos surgiram dentro do prazo de garantia legal ou contratual. Não obstante, os tribunais não têm se utilizado de tais critérios, em sua grande maioria, para analisar pedidos de resolução ou indenizações por vícios e defeitos.

 

Com relação aos prazos, eles variam conforme a natureza do vício (aparente e oculto), bem como com relação à intenção da parte prejudicada (se é a reparação do vício, o abatimento do preço, a resolução do contrato ou uma indenização pelos danos causados), sendo que a jurisprudência tem posição bastante flexível em relação ao prazo prescricional para reclamar indenização ou de obrigação de reparar o vício; entendimento que entendemos acaba por gerar grande insegurança jurídica e que impacta negativamente no bom funcionamento do mercado imobiliário.

 

Marcelo Barretto Ferreira da Silva Filho