A responsabilidade do adquirente de estabelecimento empresarial por débitos não contabilizados à luz da jurisprudência do TJSP
A exploração de qualquer atividade empresarial tem início com a reunião pelo empresário dos bens corpóreos e incorpóreos necessários ao desenvolvimento da atividade econômica.
A este conjunto de bens organizados pelo empresário, a Lei denomina estabelecimento empresarial (artigo 1.142, CC).
Ao organizar o estabelecimento, o empresário agrega valor aos bens reunidos, superior a simples soma de cada um deles em separado. Desta forma, é correto afirmar que o estabelecimento empresarial possui valor no mercado, podendo, por isto, ser objeto de negociação com terceiros, conforme dispõe o art. 1.143 do Código Civil:
“Art. 1.143. Pode o estabelecimento ser objeto unitário de direitos e negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam compatíveis com a sua natureza.”
A esta operação dá-se o nome de trespasse, que ocorre quando a universalidade dos bens materiais e imateriais de uma sociedade empresária é transferida para outra, que assume aquela mesma atividade.
Em outras palavras, ao adquirir um estabelecimento empresarial, o novo dono assume todos os contratos estipulados pela sociedade, passando a gerir o negócio e auferir seus benefícios. Em contrapartida, se torna responsável por todas as obrigações sociais, inclusive aquelas anteriores à transferência do estabelecimento empresarial. A Lei, contudo, em observância à segurança jurídica das relações negociais, que depende de previsibilidade e cooperação para que funcionem de forma eficaz e pacífica, estipula que o adquirente somente se responsabiliza pelas obrigações ou débitos que estejam efetivamente contabilizados no momento do trespasse.
Este é o comando que se extrai do artigo 1.146 do Código Civil:
“Art. 1.146. O adquirente do estabelecimento responde pelo pagamento dos débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados, continuando o devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de um ano, a partir, quanto aos créditos vencidos, da publicação, e, quanto aos outros, da data do vencimento.”
Isto é assim, porque o adquirente, ao adquirir um estabelecimento empresarial, assume seus direitos e, também, suas obrigações. Desta forma, não há como presumir assunção tácita de responsabilidade por débitos ou obrigações que sequer conhecia antes da efetivação do negócio.
Esta é a única exceção verificada na regra, que apresenta natureza cogente. Desta forma, nem mesmo cláusula contratual genérica, no sentido de excluir ou limitar a responsabilidade do adquirente, produz efeitos perante os credores da sociedade. Para que o adquirente afaste sua responsabilidade, eventual cláusula nesse sentido deve ser expressa, indicando com precisão quais passivos anteriores ao trespasse ele irá assumir.
Em consulta ao repositório de jurisprudência do TJSP, verifica-se que as turmas aplicam esse entendimento no julgamento da responsabilidade do adquirente no trespasse:
“Ação de cobrança aparelhada em contrato de financiamento com alienação fiduciária em garantia Justiça gratuita – Ausência de prova idônea da insuficiência patrimonial – Benesse indeferida, evitando a malversação do instituto – Legitimidade passiva do réu caracterizada – Alienação de estabelecimento comercial – Responsabilidade do adquirente pelos débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados Inteligência do art. 1.146 do Código Civil – Cerceamento de defesa não configurado – Inocorrência de escrituração das dívidas – Insuficiência da cláusula inserida na alteração do contrato social da empresa informando que o sucessor assumiu o ativo e o passivo da sociedade – Recurso não provido.” (Apelação nº 1000607-90.2017.8.26.0360, rel. Des. César Peixoto, 38ª Câmara de Direito Privado, j. 09-5-2018).
“PROCESSO CIVIL. Execução – Sucessão empresarial – Trespasse de estabelecimentos da executada – Indeferimento do pleito de inclusão de terceira (JBS S/A) no polo passivo da execução – Admissibilidade – Inexistência de prova de ciência inequívoca (com a contabilização da dívida) e da assunção pela adquirente da responsabilidade pela dívida Requisito do art. 1.146 do CPC – Precedentes desta Corte – Argumento de que o trespasse e a responsabilização da terceira foram reconhecidos em outra ação, de outro credor, do qual a exequente não participa – Descabimento – Decisão que não projeta os seus efeitos nesta execução, a ponto de liberar a exequente agravante do ônus de provar desde logo que a terceira empresa tivera, por meio da escrituração a que a alude o art. 1.146 do CC, ciência inequívoca da dívida que ela recorrente executa – Decisão mantida Recurso desprovido.” (Agravo de Instrumento 2300935-64.2022.8.26.0000, rel. Des. Álvaro Torres Junior, 20ª Câmara de Direito Privado, j. 18-03-2024).
“Apelação – Ação de cobrança – Contrato de compra e venda de fundo de comércio – Sentença que julgou parcialmente procedente a ação e condenou os réus/apelantes à devolução dos valores desembolsados pela autora/apelada para pagamento de pendências tributárias, previdenciárias e honorários pagos a contador – Insurgência – Alegação dos réus de que, por ocasião do negócio pactuado, a autora tinha ciência das dívidas da empresa e que já se passaram 2 (dois) anos do prazo da responsabilidade solidária prevista no art. 1.146 do Código Civil – Dívidas, contudo, não contabilizadas na empresa, vez que surgidas somente após procedimento de verificação de omissão de faturamento pelo Fisco – Alienantes que não se desincumbiram do ônus da prova da ciência, pelo adquirente do estabelecimento, da existência de passivo não contabilizado – Honorários do contador pagos por terceiro, sem qualquer comprovação de que a autora tenha suportado tal despesa – Sentença reformada neste aspecto – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.” (Apelação nº 1021390-15.2014.8.26.0100, rel. Des. Jorge Tosta, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 13-6-2022).
“Honorários advocatícios – Cumprimento de sentença -Agravada que não foi localizada para fins de intimação para pagamento da verba honorária – Pretendida pela agravante a intimação da empresa ‘Allergan’ para efetuar o pagamento do débito, com base no art. 1.146 do CC -Documentos apresentados pela agravante que são insuficientes para se responsabilizar tal empresa pelo pagamento do débito em discussão – Não evidenciado, ademais, que a dívida em questão esteja regularmente contabilizada, como exige o art. 1.146 do CC – Agravo desprovido.” (A.I. nº 2190324-54.2016.8.26.0000, rel. Des. José Marcos Marrone, 23ª Câmara de Direito Privado, j. 30-11-2016).
“TRESPASSE DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL. POSTO DE COMBUSTÍVEL. PASSIVO AMBIENTAL NÃO INFORMADO QUANDO DA COMPRA DO ESTABELECIMENTO. PRELIMINAR EM CONTRARRAZÕES RECOLHIMENTO DE CUSTAS INSUFICIENTE. NÃO CARACTERIZAÇÃO. Às custas recursais foram recolhidas corretamente, tendo em vista que o valor discutido em recurso é o reconhecimento da compensação dos R$ 135.000,00 gastos para regularizar o requerido pela CETESB. RAZÕES RECURSAIS EMBARGADO QUE SE RESPONSABILIZOU POR DÍVIDAS OCASIONADAS ANTES DA VENDA. PASSIVO AMBIENTAL QUE ERA DE RESPONSABILIDADE DO EMBARGADO, TANTO QUE APRESENTOU DEFESA NO PROCESSO ADMINISTRATIVO SENDO INDEFERIDO PELA CETESB. FALTA DE COMPROVAÇÃO DE QUE OS EMBARGANTES TINHAM CIÊNCIA DO PASSIVO QUANDO DA COMPRA DO PONTO COMERCIAL. O valor gasto pelos embargantes para regularizar o passivo ambiental deve ser compensado com o saldo remanescente da dívida, lembrando que os valores das parcelas não poderiam ter sido retidos, pois não se enquadravam no disposto na cláusula 5, § 2º do contrato firmado pelas partes. O embargado não comprovou nos autos que os embargantes tinham conhecimento do passivo ambiental e que mesmo assim efetuaram a negociação. PRELIMINAR EM CONTRARRAZÕES REJEITADA. APELAÇÃO PROVIDA.” (Apelação 1000710-97.2020.8.26.0132 – Rel. Des. Sandra Galhardo Esteves – j. 05/12/2023).
No mesmo sentido: TJSP, Apel. 1002965-13.2019.8.26.0019, rel. Des. 1002965-13.2019.8.26.0019, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 17/11/2023; TJSP, Apel. 1001271-29.2019.8.26.0659, rel. Des. Azuma Nishi, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 31/08/2021.
Em todos os acórdãos pesquisados, o fundamento relevante residiu na prova da ciência inequívoca do adquirente sobre o passivo da sociedade, em razão deles não estarem regularmente contabilizados. Nota-se ter sido irrelevante, inclusive, a alegação genérica de que adquirente assumia os passivos sociais, pois, ainda nesta situação, a presunção é de que esta assunção de responsabilidade se deu por passivos conhecidos no momento do negócio.
Entretanto, a presunção de desconhecimento não é absoluta e pode ser afastada por outros elementos que demonstrem que o adquirente tomou conhecimento e se responsabilizou por eles:
“Embargos de terceiro – Penhora de faturamento – Trespasse – Responsabilidade do adquirente – Aplicação direta do art. 1.146 do Código Civil de 2002 – Dívida pretérita – Ausência de questionamento acerca da ausência de contabilização – Legitimidade da constrição -Improcedência – Sentença reformada – Recurso provido.” (Apelação 0007380-79.2010.8.26.0566, rel. Des. Fortes Barbosa, 6ª Câmara de Direito Privado, j. 29-11-2012).
“Apelação – Embargos à execução conexos julgados em conjunto – Nota promissória – Trespasse – Sentença de rejeição dos embargos – Manutenção. 1. Deserção Preliminar suscitada em resposta à apelação se referindo ao recurso outro Preparo, de todo modo, recolhido regularmente naquele processo. 2. Notas promissórias -Títulos vinculados ao contrato de trespasse apenas lhes retirando autonomia – Liquidez que se afere à luz do título e do correspondente contrato. 3. Responsabilidade do adquirente de fundo de comércio – Responsabilidade pelo pagamento dos débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados, nos termos do art. 1.146 do CC – Demonstração da anterioridade dos débitos e da circunstância de não estarem eles contabilizados à época do negócio que tocava aos embargantes – Sem relevo a circunstância de o instrumento contratual não haver indicado, supostamente, todos os débitos remanescentes à época do trespasse – Prova pericial descartada, por não embasada em escrituração regular – Prova testemunhal, ademais, indicando que os embargantes tiveram acesso aos documentos contábeis da empresa, à época do negócio, e destruíram parte deles em momento posterior -Quadro diante do qual não há como proclamar a existência de crédito em favor dos embargantes pelo suposto passivo da pessoa jurídica anterior à data do negócio – Ressalva da possibilidade de o reconhecimento do afirmado crédito ser reclamado pelas vias ordinárias. 4. Compensação – Completa ausência de liquidez do crédito afirmado pelos embargantes, de todo modo, afastando a possibilidade de proclamação de compensação de dívidas, por não preenchidos os requisitos do art. 369 do CC. Preliminar afastada; apelação desprovida.” (TJSP – Apelação 0002306-38.1997.8.26.0586 – rel. Des. Ricardo Pessoa de Mello Belli – 19ª Câmara de Direito Privado – j. 18-02-2013).
Desta forma, conclui-se ser de extrema relevância que o interessado na aquisição de estabelecimento comercial, além da due dilligence fiscal, societária e trabalhista, realize previamente uma análise da situação econômico-financeira da sociedade, mediante consulta aprofundada da escrituração contábil das obrigações sociais, pois é essencial para a alocação informada e eficiente de riscos.
Bibliografia
COELHO, Fábio Ulhôa. Direito Comercial: direito de empresa. Vol. 2. 23a. ed. rev. e atual. São Paulo: Thompson Reuters, 2021.
DINIZA, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 37ª. ed. rev. e atual. de acordo com a Lei 13.874/2019. São Paulo: Saraiva, 2020.
PELUSO, Ministro Cezar (coord.). Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. Barueri: Manole, 2020.
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo.
Flávia de Faria Horta Pluchino e Paula Oliveira Silva