A Insolvência Transnacional no Direito Brasileiro

1. As alterações na Lei 11.101/2005 pela incorporação pelo Direito Brasileiro das regras da Lei Modelo UNCITRAL

Em 24/12/2020, foi promulgada a Lei 14.112/20, que promoveu profundas alterações na Lei 11.101/2005 – Lei de Recuperação de Empresas e Falência, com a finalidade de atualizar e tornar mais eficaz a legislação sobre recuperação de empresas e falência.

Significativa mudança foi operada pela introdução dos mecanismos de insolvência transnacional, baseados na Lei Modelo UNCITRAL.

A partir da noção de que o objetivo principal dos procedimentos de recuperação judicial e falência é a maximização de ativos do devedor, para proporcionar maior satisfação aos credores, a Lei Modelo UNCITRAL se dedica aos procedimentos de coordenação e cooperação internacional nos processos de insolvência que apresentem elementos transfronteiriços.

Assim, os quatro elementos chaves da Lei Modelo são: acesso à jurisdição local; reconhecimento de processo estrangeiro; medidas de assistência; e cooperação entre jurisdições.

Ela não se confunde com um tratado internacional, mas é uma sugestão de regramento padrão que pode ser adotado por legislações domésticas com ou sem alterações, mediante a incorporação de suas regras à legislação local:

“[A]s ‘leis modelos’ criadas pela UNCITRAL buscam oferecer aos Estados o conteúdo de futuros diplomas normativos nacionais, para se possível, inspirar o legislador local. Com as ‘leis modelos’, a harmonização entre as diferentes normas locais seria atingida, sem o custo do convencimento do Estado em aprovar e depois ratificar um tratado.”

(RAMOS, André de Carvalho. Direito internacional privado e a ambição universalista. TIBURCIO, Carmem; VASCONCELOS, Rafael; MENEZES, Wagner (Org.). Panorama do direito internacional privado atual e outros temas contemporâneos. Belo Horizonte: Arraes, 2015. p. 24).

Entretanto, a partir do momento em que a Lei Modelo é incorporada ao ordenamento jurídico interno, o País assume implicitamente o compromisso perante os demais países de não desnaturar seu objetivo e seu conteúdo principal.

No Direito Falimentar Brasileiro, a incorporação da Lei Modelo UNCITRAL introduziu na Lei 11.101/2005 o Capítulo VI-A, que trata nos artigos 167-A até 193-A da insolvência transnacional.

A insolvência transnacional é caracterizada pelo processo de recuperação judicial ou falimentar em empresa com ativos, estabelecimento, atividade ou credores localizados em mais de um país.

Verifica-se que os pilares da incorporação da Lei Modelo foi o aperfeiçoamento dos instrumentos de cooperação entre o Poder Judiciário brasileiro e os ordenamentos jurídicos dos demais países, visando aumentar a segurança jurídica, mediante a proteção do interesse dos credores e dos demais interessados, inclusive do devedor.

Os requisitos que autorizam a aplicação das regras do Capítulo VI-A da Lei 11.101/2005 são: (i) a existência de um processo estrangeiro coletivo, que sujeite todos os bens e as atividades do devedor à supervisão de autoridade estrangeira no âmbito de um procedimento de insolvência, com propósito de reorganização ou liquidação – art. 167-B, I; e (ii) a presença de um representante estrangeiro, que esteja autorizado no processo estrangeiro a administrar os bens ou as atividades do devedor ou a atuar como representante do processo estrangeiro – art. 167, B, IV.

Logo após a entrada em vigor das regras sobre a insolvência transnacional, o Poder Judiciário Brasileiro foi acionado em dois casos de grande relevância, o que demonstra a importância e a atualidade do tema.

Neste artigo, vamos no ater à decisão proferida no Judiciário Paulista.

2. A Aplicação das Regras da Insolvência Transnacional pelo Tribunal de Justiça de São Paulo:

Recentemente o Tribunal de Justiça de São Paulo enfrentou seu primeiro caso de insolvência transnacional. A rapidez com que o assunto chegou ao Judiciário, comprova o acerto do legislador brasileiro em regulamentar a matéria a partir das regras internacionais sobre o tema.

Tratou-se de ação movida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (processo nº 1028368-61.2021.8.26.0100), ao receber notificação para que credores brasileiros apresentassem habilitação de crédito no processo de reorganização financeira do Grupo Latam, em curso perante o Tribunal de Falências dos Estados Unidos, Distrito Sul de Nova Iorque.

Por entender que a omissão do requerimento de insolvência transnacional pelo Tribunal Falimentar dos Estados Unidos violaria os direitos dos credores brasileiros de terem tratamento paritário com os demais credores estrangeiros, requereu fosse enviada comunicação direta ao Juízo estrangeiro para (a) determinar a citação do Grupo Latam para se manifestar sobre o procedimento iniciado no Brasil; (b) determinar a reciprocidade dos direitos dos credores brasileiros no processo de reorganização do Grupo Latam; (c) informar que a notificação enviada ao MP não teria validade legal e (d) informar sobre a previsão legal de reconhecimento de processo estrangeiro transnacional no Brasil, o qual deveria seguir determinados requisitos expostos na legislação doméstica.

Em primeira instância, a sentença indeferiu a petição inicial e extinguiu o processo, com base no artigo 485, do CPC, por ausência de interesse de agir do MP ou de utilidade do pedido de cooperação pois, “[…] nos termos do art. 167-H, o representante estrangeiro pode ajuizar pedido de reconhecimento do processo estrangeiro no Brasil para que aqui efeitos sejam produzidos, mesmo antes do reconhecimento propriamente dito. Não há legitimidade para outros interessados realizarem referido pedido, pelo que o Ministério Público é considerado, ainda, parte ilegítima em relação a medidas cautelares para tutelar o resultado de um futuro processo, que não poderia promover.”

A sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao julgar o recurso de apelação do Ministério Público.

O fundamento relevante do acórdão residiu no fato de que a aplicação das regras previstas no Capítulo VI-A da Lei 1.101/2005, só estariam justificadas quando uma autoridade estrangeira solicitasse assistência ao Brasil em procedimento de reorganização ou liquidação aberto em outra jurisdição, ou quando credores ou outras partes interessadas estrangeiras buscassem a abertura ou a participação em processos de insolvência disciplinados pela LREF, ou quando autoridades brasileiras buscassem assistência para processos de insolvência no Brasil em outras jurisdições, ou quando estivessem em curso, concomitantemente, procedimentos de insolvência no Brasil e em jurisdição alienígena.

Enquanto nenhuma destas quatro hipóteses fossem verificadas, inexistiria necessidade de se utilizar a via judicial pretendida pelo Ministério Público para defender o direito de terceiros credores, pois neste momento, os credores brasileiros não são afetados pelo processo de reorganização do Grupo Latam em trâmite em outra jurisdição, podendo prosseguir com suas ações e execuções normalmente e buscar a satisfação autônoma de seus créditos, conforme preconiza o art. 167-M, par. 2º e 3º, da Lei 11.101/2005.

A partir daí, o Tribunal entendeu que a notificação recebida pelo Ministério Público seria simples cientificação relativa a um fato jurídico, sem criar ou extinguir direitos subjetivos, de modo que ele próprio poderia fornecer as informações tidas como apropriadas e compatíveis com a conjuntura fática e jurídica estabelecida, inclusive acerca do capítulo VI-A da Lei 11.101/2005.

Em outras palavras, o Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu que (i) não teria sido requerida qualquer cooperação pelo Juízo estrangeiro ao Juízo local; (ii) apenas o representante estrangeiro poderia ajuizar pedido de reconhecimento de processo estrangeiro, sendo o MP parte ilegítima; e (iii) sem que haja pedido de reconhecimento de processo estrangeiro, os credores não são afetados no Brasil pelos processos de recuperação judicial em trâmite em outras jurisdições.

A decisão é importante pois consagra o comprometimento do Estado Brasileiro com os propósitos da Lei Modelo UNCITRAL, essencial para fomentar o desenvolvimento econômico, ao promover maior segurança jurídica às atividades e aos investimentos no País.

Bibliografia

BRASIL. Lei 11.101 de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. DOU de 09/02/2005. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm>

SATIRO, Francisco; BECUE, Sabrina Marina Fadel. Insolvência Transnacional; regime legal e a jurisprudência em formação. Revista dos Tribunais. vol. 1034. ano 110. p. 337-355. São Paulo: Ed. RT, dezembro 2021.

BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Apelação 1028368-61.2021.8.26.0100. Jurisdição voluntária – Procedimento concursal em trâmite no exterior – Ajuizamento de requerimento formulado pelo Ministério Público em defesa de interesse de credores brasileiros – Pretendida comunicação dirigida ao Juízo estrangeiro encarregado de processo de reorganização do Grupo LATAM – Indeferimento da petição inicial e extinção sem resolução do mérito – Confirmação – Caracterização da falta de interesse de agir e da ilegitimidade de parte – Inteligência dos arts. 167-A,167-M, §§ 2º e 3ºe 167-P da Lei 11.101/2005 – Sentença mantida – Apelo desprovido. Relator: Desembargador Fortes Barbosa, 31/082021. Disponível em < https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/resultadoCompleta.do> Acesso em 20/02/2022.

Flávia de Faria Horta Pluchino