AQUISIÇÃO DE BENS DE FALECIDOS ATRAVÉS DE ALVARÁ JUDICIAL
É corriqueiro que aberta a sucessão e não tendo os herdeiros recursos para viabilizar a quitação das dívidas deixadas pelo falecido ou mesmo para fazer frente às custas do próprio inventário [imposto de herança, custas judiciais etc.], eles optem por vender bem do acervo hereditário, através de alvará judicial, antes mesmo de realizada a partilha[1].
Neste caso, o bem será vendido pelo espólio e não pelos herdeiros. De acordo com a regra contida no art. 619, I, do Código Civil, é o inventariante que pode realizar a venda, desde que precedida de prévia autorização judicial. Para que seja concedido o alvará, o juiz ouvirá os interessados [herdeiros, credores do espólio etc.], que podem se opor a alienação.
Além da questão da alienação, a própria administração do acervo hereditário antes da partilha é de competência do inventariante. De acordo com o Código Civil Brasileiro [art. 1.791, Parágrafo único], até a partilha, o direito dos co-herdeiros quanto à propriedade e posse da herança será indivisível e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio.
Neste sentido, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou provimento ao recurso especial de um herdeiro que desejava anular deliberações assembleares de uma sociedade anônima (REsp 1.953.211). A relatora, ministra Nancy Andrighi, em seu voto, afirmou que até a conclusão da partilha, é o espólio o titular dos direitos sobre os bens. Assim, o recorrente “carecia de legitimidade para exercer a pretensão anulatória deduzida” (“Ação Declaratória de Nulidade e Anulação de deliberações assembleares”), pois haveria necessidade de verificar se a sua posição jurídica de acionista decorria diretamente da sua condição de herdeiro ou da sua inscrição ou averbação no livro de registro de ações da sociedade.
A ministra destacou que várias providências deveriam ser tomadas após a abertura da sucessão, para definir a destinação dos bens deixados pelo falecido:
a) identificação prévia dos bens integrantes do patrimônio;
b) identificação dos herdeiros;
c) identificação das dívidas do falecido e seu pagamento;
d) que os tributos incidentes na transmissão causa mortis fossem pagos.
O voto menciona ainda que antes destas providências, o que se estabelece sobre o acervo patrimonial é um condomínio entre os herdeiros sucessores, sendo que apenas a partilha extingue o espólio e transfere a titularidade da propriedade dos bens a cada herdeiro.
Tais considerações parecem se chocar com o chamado droit de saisine ou princípio de saisine, pelo qual o domínio e a posse dos bens do falecido imediatamente transmitem-se aos herdeiros[2], regime este adotado pelo Código Civil Brasileiro em seu art. 1.784.
De acordo com o princípio de saisine, a morte é a causa da transmissão da herança e, também seu antecedente lógico. A transmissão é do patrimônio ativo e passivo. Os direitos e a posse passam aos novos titulares da herança que deverão assumir os débitos, respondendo por todas as dívidas do falecido até as forças da herança, conforme prescreve o art. 1.792 do Código Civil.
A questão é complexa, pois se a transmissão dos bens se dá de forma automática e no momento do falecimento, qual a razão do inventário? Se a venda de bem do espólio se der através de alvará, deve ser considerada como feita pelo(s) herdeiro(s) ou pelo espólio do falecido?
Tais questão são fundamentais para saber quem é o vendedor, de modo a realizar a due diligence imobiliária. A due diligence dos vendedores continua a ser relevante, de modo a evitar alegação de fraude à execução, especialmente nas esferas tributária e trabalhista[3]. Além de se verificar as certidões do falecido, seria necessário a análise das certidões dos herdeiros, já que conforme o princípio da saisine, desde o óbito do de cujus os herdeiros já teriam passado a condição de proprietários dos bens?
De acordo com doutrina, a saisine é uma das exceções ao princípio de que a propriedade imóvel somente se adquire pelo registro[4]. O registro, na sucessão causa mortis não tem efeito constitutivo do domínio, mas tão somente regularizatório, permitindo ao herdeiro ingressar na cadeia registrária e futuramente alienar o imóvel a título derivado[5].
A questão ganha ainda maior complexidade se verificarmos que, em nosso país, não se transmite herança negativa. Quem responde pelas dívidas é o patrimônio deixado pelo falecido. Caso as dívidas sejam maiores que o valor dos bens, os herdeiros não recebem nada, mas também não podem ser responsabilizados, caso a herança não seja suficiente para pagar os credores. Neste sentido, o art. 1.997 do Código Civil:
“Art. 1.997. A herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido; mas, feita a partilha, só respondem os herdeiros, cada qual em proporção da parte que na herança lhe coube.”
Ou seja, nem sempre ocorrerá de fato a transmissão hereditária, pois no caso de os bens do falecido não terem valor superior as dívidas, não ocorrerá a transmissão da herança aos herdeiros. Não ingressando os bens no patrimônio dos herdeiros, não há que se falar na necessidade de realizar análise de certidões destes para aquisição de imóveis.
Outra variante a ser considerada é a forma de pagamento. É comum que os juízes ao autorizarem venda de bem do acervo hereditário, determinem que o preço seja depositado em juízo. Conforme o art. 160 do Código Civil, estará afastada a fraude a execução quando o adquirente de bens de devedor insolvente depositar, em juízo, o preço. Tendo depositado em juízo o preço, o adquirente estará resguardado.
Alguns podem cogitar que na hipótese de o preço depositado em juízo ser consumido parcialmente com o pagamento de dívidas deixadas pelo falecido, e restar saldo a ser partilhado entre os herdeiros, esta diferença a ser partilhada em favor dos herdeiros ensejaria a necessidade de diligência dos herdeiros. Entretanto, não existirá tal necessidade. Do mesmo modo que o credor do herdeiro não pode se habilitar no inventário conforme art. 642 do CPC[6], não se pode confundir o patrimônio do espólio com o patrimônio do herdeiro.
Em conclusão, a despeito do direito brasileiro ter adotado a ficção jurídica pelo qual o domínio e a posse dos bens do falecido imediatamente transmitem-se aos herdeiros, a existência de eventuais dívidas dos herdeiros não maculará a venda de bens de espólio autorizada judicialmente, desde que o preço seja depositado em juízo.
Por outro lado, se o alvará não determinar o depósito do preço em juízo, e o adquirente realizar o pagamento diretamente aos herdeiros, os terá tratado como efetivos titulares do imóvel alienado, tendo repassado valores que apenas seriam obtidos após ultimada a partilha. Nesta hipótese, a due diligence não somente do espólio, mas dos herdeiros, será essencial, para evitar alegação de fraude e ineficácia do negócio jurídico.
Rodrigo Elian Sanchez
[1] Neste sentido: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. ALVARÁ PARA A ALIENAÇÃO DE BEM. Decisão que indeferiu a expedição de alvará para a venda de lotes. Inconformismo. É plausível a expedição de alvará para a venda de imóvel, de modo a viabilizar o pagamento de impostos e a tramitação do inventário. Alvará, contudo, condicionado ao depósito do valor auferido com a venda do imóvel, a fim de garantir eventual pagamento de dívidas – Decisão reformada Recurso provido”. (TJSP – Agravo de instrumento nº 0420803-90.2010.8.26.0000, Relator: Viviani Nicolau, Data de Julgamento: 01/03/2011, 9ª Câmara de Direito Privado). “Agravo de Instrumento. Inventário. Indeferimento de expedição de alvará para venda de um dos imóveis a fim de quitar os débitos do inventário. Informações do juízo de origem que explicam as razões do indeferimento. Existência de dívidas trabalhistas e condominiais. Solução mais apropriada que deve ser a de autorização da venda do imóvel com o depósito do valor integral em juízo, com liberação posterior apenas do valor necessário a quitar as despesas do inventário. Recurso parcialmente provido.” (TJSP – Agravo de instrumento nº 0254137-65.2011.8.26.0000, Relator: Fábio Quadros, Data de Julgamento: 19/01/2012, 4ª Câmara de Direito Privado).
Para ter acesso integral ao acordão acesse o link: https://www.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/ITA?seq=2113216&tipo=0&nreg=202101174032&SeqCgrmaSessao=&CodOrgaoJgdr=&dt=20220321&formato=PDF&salvar=false
[2] A fórmula saisine é de origem medieval (1.259), nascida do direito costumeiro parisiense. A finalidade precípua do instituto é a defesa do próprio direito de herança, da propriedade dos bens que a compõem, em favor dos herdeiros do de cujus. Tanto é que a expressão saisine deriva do vocábulo latino sacire, que significa “apropriar – se”, “se imitir na posse”. Na Idade Média, todavia, passou-se à exigência que a posse dos bens do servo fosse devolvida ao seu senhor, constrangendo os herdeiros a pagamento para que fossem imitidos nessa posse. Como reação a esse estado de coisas, o direito costumeiro francês consagrou a transferência imediata dos haveres do servo aos seus herdeiros. Assim, surge no século XIII o droit de saisine na doutrina francesa, consagrando a imediata passagem dos bens do morto a seus herdeiros que recebiam a propriedade e a posse dos mesmos.
Pondera Caio Mário da Silva Pereira que o droit de saisine não foi uma peculiaridade francesa, porquanto tal instituto já era proclamado no direito germânico, ou ao menos admitido, quando da adoção da fórmula: Der Tote erbt den Lebenden.
No nosso direito pretérito prevaleceu o entendimento do Direito Romano até que este fosse alterado pelo Alvará de 9 de novembro de 1754, quando se estabeleceu a transmissão aos herdeiros desde o momento da abertura da sucessão. Tal princípio adentrou nosso direito com a Consolidação de Teixeira de Freitas, a teor do seu art. 978 e foi recepcionado, afinal, pelo legislador civilista de 1916, ao prescrever no art. 1.572 que: “Aberta a sucessão, o domínio e a posse da herança transmitem-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”.
[3] Sobre a persistência de sistemática ultrapassada para análise de fraude à execução em operações imobiliárias, nas esferas fiscal e trabalhista, conferir artigo AQUISIÇÃO DE IMÓVEIS: necessidade de novos avanços nas áreas trabalhista e fiscal, visando a desburocratização das operações imobiliárias.
[4] Neste sentido: Paulo LÔBO. Direito Civil: Coisas. v. 4. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2023, e, LOUREIRO, Francisco Eduardo In PELUSO, Cezar (Coord.). Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 5. ed. rev. e atual. Barueri: Manole, 2011, p. 1474 e 1476.
[5] Neste sentido, recente acordão do Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo [TJSP, Apelação Cível nº 1020452-68.2024.8.26.0100, Conselho Superior da Magistratura, Rel. Francisco Loureiro, d.j. 29 de maio de 2024]. No mesmo sentido, REsp nº 1860313 – SP (2019/0261236-4), 3ª turma, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, d.j. 22 de agosto de 2023.
[6] O credor individual de herdeiro inadimplente não possui legitimidade para solicitar a habilitação de seu crédito em inventário, tendo em vista que o artigo 642 do Código de Processo Civil de 2015 autoriza apenas que os credores exclusivos do espólio – e não de herdeiros específicos – busquem a habilitação do crédito. (STJ: REsp nº 1.877.738/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 9/3/2021, DJe de 11/3/2021; AgInt no AREsp nº 1.955.075/PR, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 22/2/2022, DJe de 3/3/2022, e AgInt no AREsp nº 1.955.075/PR, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 22/2/2022, DJe de 3/3/2022)