A DISPENSA DA ESCRITURA PÚBLICA NA INCORPORAÇÃO DE BENS IMÓVEIS NA PESSOA JURÍDICA.

O artigo 221 da Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos ou “LRP”), elenca o rol de títulos admitidos a registro no Registro Imobiliário. Ao se analisar a norma, verifica-se que os títulos admitidos a registro no RGI são instrumentos públicos ou que possam ser a eles equiparados.

 

A razão de ser do instrumento público relaciona-se à necessidade social de segurança jurídica que determinados negócios demandam, em razão de preverem a observância de regras jurídicas próprias, indispensáveis para a validade e eficácia deles[1].

 

Nesse sentido, ensina Leonardo Brandelli (apud BRANDELLI, 2023, P. 208):

 

Desse surgimento histórico, como meramente redator e com caráter autenticante, de tornar crível o que afirmasse ocorrer em sua presença, evoluiu o notariado, diante do aumento da complexidade da vida jurídica, para tornar-se um profissional do direito que, além de redigir os devidos instrumentos jurídicos com fé pública, conhece o direito, faz uma qualificação jurídica dos atos que realiza e assessora jurídica e imparcialmente as partes envolvidas no negócio jurídico.”[2]

 

Dispõe o artigo 108 do Código Civil:

 

Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no País”.

 

Ou seja, a forma pública é da natureza dos negócios jurídicos imobiliários, o que, comumente, enseja a interpretação equivocada de que a escritura pública seria indispensável para a validade e eficácia de todo negócio jurídico envolvendo uma transação imobiliária em valor superior a trinta salários-mínimos.

 

Essa confusão ocorre porque doutrina e jurisprudência consolidaram o entendimento de que o rol de títulos formais do artigo 221 da LRP seria taxativo, de modo que somente seria admitido o registro das espécies ali elencadas.

 

Entretanto, na medida em que a razão de ser da escritura pública, como já mencionado, reside na necessidade social de segurança jurídica, é correto concluir que se a segurança jurídica puder ser suprida por outros mecanismos jurídicos estabelecidos em lei que igualmente permitam verificar a segurança do negócio, desaparecerá a necessidade da escritura pública.

 

Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro[3], sobre a taxatividade do rol do artigo 221 da LRP, explica que embora taxativo, esse rol não é exauriente, havendo inúmeras disposições normativas que exceptuam a regra. É o que se verifica no artigo 64 da Lei 8.934/94:

 

A certidão dos atos constitutivos e de alteração de empresários individuais e de sociedades mercantis, fornecida pelas juntas comerciais em que foram arquivados, será o documento hábil para a transferência, por transcrição no registro público competente, dos bens com que o subscritor tiver contribuído para a formação ou para o aumento do capital social.”

 

E, também no artigo 89 da Lei 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas):

 

“Art. 89. A incorporação de imóveis para formação do capital social não exige escritura pública”.

 

Verifica-se, portanto, que o título passível de registro no RGI é aquele que estiver previsto em Lei, ainda que não figure no rol do artigo 221 da LRP.

 

Disto se conclui que a incorporação de bens para formação do capital social de pessoa jurídica dispensa a escritura pública, pois, nestes casos, a certidão de constituição ou de alteração da sociedade, fornecida pelas juntas comerciais, é o título hábil ao registro da transmissão da propriedade no registro de imóveis.

 

Não obstante a dispensa da escritura pública na incorporação dos bens imóveis no capital social da pessoa jurídica, o inverso não observa a mesma regra. Na devolução do bem ao sócio, qualquer que seja a operação, a escritura pública é indispensável para a transmissão da propriedade.

 

A regra, in casu, é justamente a inexistência de disposição legal em sentido contrário, o que atrai a aplicação do artigo 108 do Código Civil, sendo da essência do ato a escritura pública.

 

Do mesmo modo, na incorporação entre pessoas jurídicas, prevista no artigo 1.116 do Código Civil e no artigo 223 da Lei 6.404/76, verifica-se a desnecessidade de escritura pública para salvaguardar a segurança jurídica do negócio, por se tratar de atos que obedecem a um rigoroso regramento jurídico, fiscalizado por agentes públicos.

 

A incorporação entre pessoas jurídicas é a operação em que uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações.

 

Nos termos do art. 1.118 do Código Civil, é da essência da validade e eficácia desse negócio, a averbação dos atos de incorporação nas Juntas Comerciais, a fim de que seja dada publicidade a terceiros, especialmente aos credores das pessoas jurídicas incorporadas.

 

Logo, como muito bem salienta Valestan Milhomem da Costa[4], todos os elementos de segurança do negócio jurídico estão claramente previstos na lei.

 

Os atos são formalizados em assembleias ou reuniões de sócios das pessoas jurídicas envolvidas e são, posteriormente, levados a registro nos órgãos públicos competentes, que são dotados de fé-pública. Ou seja, o agente público, dotado de fé-pública, verifica a observância estrita do regramento jurídico aplicável ao negócio, validando sua regularidade e eficácia.

 

A exceção para a incorporação de bem imóvel ao capital social da pessoa jurídica ou para a incorporação entre pessoas jurídicas é direta, pois, decorre da Lei, que prevê expressamente o título hábil a registro no registro imobiliário (certidão da Junta Comercial contendo o ato de incorporação). Coaduna-se, portanto, com o enunciado do artigo 108 do Código Civil.

 

O questionamento poderia surgir quando se tratar de sociedades simples, associações ou outras pessoas jurídicas não empresariais, cujos atos são inscritos no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, pois, nesses casos, esse título não está previsto nem no art. 221 da LRP, nem em lei especial.

 

Esta situação poderia denotar que para essas pessoas jurídicas, a escritura pública seria essencial para permitir a transmissão da propriedade dos bens imóveis e de direitos reais sobre imóveis decorrentes da incorporação.

 

Não obstante, na medida em que a fé-pública é inerente também nos registros civis de pessoas jurídicas e, sendo os atos de incorporação dessas pessoas jurídicas, por força do Enunciado 70 da I Jornada de Direito Civil, submetidos aos mesmos procedimentos da incorporação de sociedades empresárias previstos na Lei 6.404/76, tem-se que o título hábil para o registro da sucessão patrimonial nessas sociedades e associações é a própria ata de incorporação, registrada no Registro Civil das Pessoas Jurídicas.

 

Flávia de Faria Horta Pluchino

 

[1] DA COSTA, Valestan Milhomem. A Incorporação (Fusão e Cisão) de Pessoa Jurídica Dispensa Escritura Pública na Exegese do Artigo 108 do Código Civil. Revista de Direito Imobiliário. Vol. 94. ano 46. p. 205-217. São Paulo: Ed. RT, jan-jun.2023.

[2] Op. Cit., p. 208

[3] RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Lei de Registros Públicos Comentada. Coord. Alberto Gentil de Almeida Pedroso. 1a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 753.

[4] Op. Cit. p. 214.