BOLETIM INFORMATIVO – SETEMBRO 2023

Boletim RES, Advogados

Setembro de 2023

 

Prezados Srs., neste boletim trazemos artigos nas áreas do direito: imobiliário, processual civil e sucessório.

 

No campo do direito imobiliário, abordamos a necessidade de certidões negativas do incorporador para viabilizar o registro da incorporação imobiliária.

 

No espaço reservado para o direito processual civil, tratamos sobre a possibilidade de dos efeitos retroatividade da decisão do Supremo Tribunal Federal que declare lei inconstitucional, inclusive sobre a coisa julgada.

 

Por fim e no campo do direito sucessório é analisado o atual tratamento legal dado a sucessões dos bens digitais [desde perfil em mídia social até criptomoedas] e os projetos de lei em tramite que visam regulamentar a sucessão da herança digital.

 

Lembramos que em nosso site, você pode sempre encontrar notícias atualizadas; uma boa leitura!

 

 

Índice:

 

Direito Imobiliário:

 

As certidões negativas do incorporador como requisito para registro da incorporação imobiliária.

Fls………………………………………………………………………………………………………….03-10

– Rodrigo Elian Sanchez

 

 

Direito Processual Civil:

 

Retroatividade da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a coisa julgada inconstitucional.

Fls………………………………………………………………………………………………………….11-19

Flavia de Faria Horta Pluchino

 

 

Direito Sucessório:

 

Herança digital e direito sucessório.

Fls………………………………………………………………………………………………………….20-29

– Aline Hitomi Kawakami Yamaguchi

 

 

As Certidões Negativas do Incorporador como Requisito para Registro da Incorporação Imobiliária.

 

A lei de incorporação imobiliária [Lei n.º 4.591/64] em seu art. 32, estipula os documentos que devem instruir o memorial para registro da incorporação. Dentre eles, as certidões negativas de impostos federais, estaduais e municipais, de protesto de títulos, de ações cíveis e criminais e de ônus reais relativa ao imóvel, bem como do incorporador/proprietário.

 

É raro que uma empresa de incorporação imobiliária não tenha processo em curso, seja de um cliente insatisfeito com uma unidade adquirida, seja de um antigo empregado ou até uma discussão tributária.

 

De acordo com a “letra da lei”, nestas situações o registro da incorporação imobiliária seria negado pelo oficial de registro de imóveis; o que não faz sentido, especialmente, quando as ações apontadas nas certidões não tiverem a possibilidade de trazer risco à conclusão do empreendimento e a venda das unidades.

 

A exibição de tais certidões tem como finalidade demonstrar a situação jurídica e financeira dos agentes envolvidos na incorporação imobiliária, para se vislumbrar se é minimamente possível a conclusão do empreendimento.

 

A lei de incorporações tutela simultaneamente dois interesses distintos: estimular e regular o desenvolvimento do mercado imobiliário e trazer segurança para os adquirentes de unidades futuras.

 

Tais objetivos da legislação não são antagônicos, muito pelo contrário; quanto for maior a segurança dos adquirentes, maior será o desenvolvimento do mercado imobiliário. Neste espírito, passaremos a refletir sobre a melhor interpretação do art. 32, “b”, da lei de incorporações.

 

Das certidões fiscais

 

A certidão federal de débitos fiscais apenas será exigida quando se tratar de imóvel rural; urbano que tenha sido rural nos últimos cinco anos, ou que seja aforado a união[1]. Fora destas hipóteses, a única certidão fiscal exigida seria a municipal, da situação do imóvel. Tal entendimento foi, inclusive, adotado pela Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo: “210.2. As certidões de impostos relativas ao imóvel urbano são as municipais[2].

 

As certidões fiscais a serem fornecidas não são exclusivamente do imóvel, mas também do incorporador e proprietário do imóvel.

 

Das certidões pessoais

 

Deverão, também, ser apresentadas as certidões de protestos, dos distribuidores cíveis e criminais, tanto da justiça federal como da estadual[3]. As certidões cíveis e criminais serão extraídas pelo período de 10 (dez) anos e as de protesto pelo período de 5 (cinco)[4].

 

Caso o incorporador não seja o proprietário do imóvel onde será erigido o empreendimento, as certidões deverão ser tanto dele, como do proprietário.

 

É de se destacar, que as certidões deverão abranger a comarca onde se localiza o terreno, como também o da sede ou residência do incorporador/proprietário.

 

Ônus reais

 

A certidão de ônus do imóvel deve ser compreendida com a certidão atualizada da matrícula do imóvel, a não ser que o título do imóvel ainda se encontre no sistema de transcrição. Isso em razão das certidões de inteiro teor das matrículas imobiliárias já mencionarem todo o histórico do imóvel e evidentemente de eventuais ônus.

 

E se as certidões foram positivas?

 

Sempre que das certidões pessoais ou reais constar a distribuição de ações cíveis, surge dúvida por conta de a lei fazer alusão a necessidade de apresentação de certidões negativas.

 

É de se destacar, que no que se refere as certidões de ônus reais e fiscais, a própria lei de incorporações, em seu §5ª do aludido artigo 32 assim ressalva: “existência de ônus fiscais ou reais, salvo os impeditivos de alienação, não impedem o registro, que será feito com as devidas ressalvas, mencionando-se, em todos os documentos, extraídos do registro, a existência e a extensão dos ônus”.

 

Ou seja, caso tal ônus não impeça a alienação das unidades futuras, é admitida a inscrição da incorporação, porém, de forma a zelar pela transparência e visando para que os adquirentes possam tomar decisão informada, o registrador indicará em todos os documentos, extraídos do registro da incorporação, a existência e a extensão do ônus (arts. 32, § 5º, e 37 da Lei 4.591).

 

Como exemplo de ônus que impede a alienação encontra-se a cláusula de inalienabilidade imposta em negócios graciosos (bem recebido por doação ou disposição testamentária) e a indisponibilidade decorrente de decisão judicial ou lei[5].

 

Uma dúvida frequente é em relação a penhora do imóvel[6], já que ela não implica na indisponibilidade do bem. A questão é controversa, sendo que a possibilidade de registro da incorporação em imóvel nesta situação poderia ser justificada em razão da taxatividade da lei; a existência de ônus real, salvo os impeditivos de alienação, não impede o registro da incorporação.

 

Por outro lado, a posição no sentido de que a penhora do imóvel seria obstáculo ao registro da incorporação, tem como principal argumento o fato da penhora, apesar de não impedir, limitar a disponibilidade do bem[7]. A venda do bem penhorado configura fraude à execução e é ineficaz em relação ao credor/exequente[8].

 

Tal posição foi inclusive encampada pela Corregedoria-Geral da Justiça do Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul, que inseriu na Consolidação Normativa Notarial e Registral, o artigo 773: “Será recusado o registro da incorporação quando houver ônus impeditivo da construção ou da alienação, inclusive no caso de penhora.

 

Impedir o registro da incorporação imobiliária, quando da existência de penhora no imóvel, nos parece o mais razoável, por dois motivos. O primeiro seria para manter a congruência, pois é incompatível permitir o registro de incorporação para venda de unidades futuras, sendo que a alienação delas, enquanto permanecer a penhora, será ilícita [fraude à execução]. O segundo motivo, leva em consideração ter a legislação atribuído ao oficial registrador o poder-dever de avaliar a existência de apontamentos que coloquem em risco a possibilidade de o incorporador adimplir com suas obrigações e concluir o empreendimento. O oficial deve analisar as certidões para “barrar” o registro de incorporação, quando verificar tais riscos, sendo a existência de penhora sobre o imóvel, uma destas situações. Se já na “largada”, o incorporador não consegue quitar o débito que levou a penhora do imóvel, evidente a situação de fragilidade financeira do incorporador e o risco aos futuros adquirentes, especialmente considerando a possibilidade de excussão do terreno, onde se pretende erigir o empreendimento.

 

Uma garantia cada vez mais usual em nosso sistema jurídico é a alienação fiduciária em garantia, sendo interessante mencionar que a existência de gravame fiduciário é impeditiva para o registro da incorporação. O credor (fiduciário) além de não ter a posse direta sobre o imóvel, a propriedade que detém encontra-se sob condição resolutiva expressa. Frisa-se que para o proprietário fiduciário, o imóvel constitui patrimônio afetado, o qual deve ser mantido intacto em sua natureza até que o devedor faça o resgate (pagando a dívida). Se a dívida não for paga, o imóvel fica consolidado na propriedade do credor [Lei 9.514, de 1994]. Sob outra perspectiva, o devedor (fiduciante) não pode efetuar incorporação imobiliária, porque não é proprietário, mas apenas titular de um direito real de aquisição.

 

Para além dos ônus reais, destaca-se que sempre que das certidões pessoais constar apontamento, deve ser exigida certidão complementar, esclarecedora de seu desfecho ou estado atual, salvo quando se tratar de ação que, pela sua própria natureza, possa ser desde logo aferida a inexistência de qualquer repercussão econômica para o empreendimento, ou, relação com o imóvel objeto da incorporação[9].

 

A certidão complementar [objeto e pé], poderá ser substituída por impressão do andamento do processo digital, quando dos andamentos for possível verificar o estado do processo e a repercussão econômica do litígio, conforme o § 14º, artigo 32 da Lei [introduzido pela Lei 14.382/2022]

 

O registrador para avaliar se a ação em andamento ou o protesto existente implica em impedimento ao registro da incorporação, deverá, também, se valer do cotejo da possível dívida [que poderá advir da sucumbência na ação] com o patrimônio do incorporador, assim como verificar se há garantias dadas, de modo a sopesar os riscos aos futuros adquirentes[10].

 

Em resumo nos parece a melhor interpretação da lei que as certidões mencionadas no art. 32, “b” da Lei de incorporação imobiliária, não precisam ser negativas; podem ser positivas, desde que os esclarecimentos prestados sejam idôneos para demonstrar que é viável e possível a conclusão do empreendimento.

 

Entretanto e nessas situações [de existir apontamento/ônus real ou fiscal], o oficial deverá consignar, como ato de averbação, a existência do ônus e no caso das fiscais, das certidões positivas e as positivas com efeito de negativas, de forma a dar publicidade ao apontamento.

 

Rodrigo Elian Sanchez

 

 

Retroatividade da Decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a Coisa Julgada Inconstitucional.

 

Coisa julgada é a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso (art. 502, CPC/15). Através dela, impede-se que se renove discussão sobre a relação de direito material já decidida entre as mesmas partes.

 

Através da coisa julgada, portanto, consolida-se a segurança jurídica, ao garantir ao jurisdicionado que o pronunciamento judicial se torne definitivo, eliminando-se, assim, as angústias e incertezas nas relações jurídicas.

 

A coisa julgada inconstitucional é representada pela sentença judicial transitada em julgado, cujos fundamentos jurídicos são declarados inconstitucionais por decisão superveniente do Supremo Tribunal Federal.

 

O artigo 475-L, inciso II e parágrafo 1º do CPC/1973, já previa a inexigibilidade do título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidos pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.

 

A interpretação deste dispositivo rendia acalorados debates por parte dos juristas e doutrinadores, se a interpretação do Supremo teria aplicação imediata às situações jurídicas já constituídas e decididas por sentença transitada em julgado ou se haveria a necessidade de ajuizamento da ação rescisória para desconstituir o título executivo judicial.

 

Desde aquela época, o posicionamento do STF quanto à relativização da coisa julgada não era unânime[11]. Os Ministros Carlos Ayres Britto, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski se manifestavam no sentido de que a declaração de inconstitucionalidade dos fundamentos jurídicos da decisão opera efeitos imediatos e ex tunc sobre a decisão e seus efeitos. Já os Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio e Luiz Fux defendiam a impossibilidade de relativização da coisa julgada.

 

Segundo eles, a coisa julgada não teria compromisso nem com a justiça, nem com a verdade, mas com a pacificação, estabilidade e segurança jurídica. Desta forma, defendiam que sentença judicial transitada em julgado somente poderia ser desconstituída mediante ação rescisória.

 

Esta questão foi pacificada no julgamento do recurso extraordinário RE 730.462/SP, onde o plenário do STF decidiu em 28/05/2015, que a decisão do Supremo que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de norma, não produz automática reforma ou rescisão de decisões anteriores transitadas em julgado, sendo indispensável o ajuizamento de ação rescisória[12].

 

Logo, a sentença judicial transitada em julgado, cujos fundamentos jurídicos fossem declarados inconstitucionais por decisão superveniente do STF, somente poderia ser desconstituída se ainda estivesse em curso o prazo de dois anos para o ajuizamento da ação rescisória previsto no art. 476 do CPC/73. Esgotado esse prazo, os efeitos da sentença judicial transitada em julgado não poderiam sofrer qualquer restrição de eficácia.

 

O CPC/2015 repetiu o artigo 475-L, inciso II e seu parágrafo 1º, no artigo 525, parágrafo 12. Além disso, introduziu os parágrafos 13, 14 e 15, que assim dispõem:

 

“§ 13. No caso do § 12, os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal poderão ser modulados no tempo, em atenção à segurança jurídica.

§ 14. A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no § 12 deve ser anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda.

§ 15. Se a decisão referida no § 12 for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.”

 

As novas disposições legais reacenderam entre juristas e doutrinadores os debates acerca da relativização da coisa julgada material, em razão do novo marco para a contagem dos dois anos para ajuizamento da ação rescisória fundada em declaração superveniente de inconstitucionalidade pelo STF.

 

Nos termos do parágrafo 15 do artigo 525 do CPC/15, esse prazo passou a ser contado do trânsito em julgado da própria decisão do STF e não mais do trânsito em julgado da decisão rescindenda. Com isso, a Lei passou a autorizar a retroatividade da decisão do STF às situações anteriores, relativizando a coisa julgada material.

 

Para os defensores da relativização, a inconstitucionalidade é o mais grave vício de que padece o ato jurídico, de modo que ele é insanável. Desta forma, ela não é e nem pode ser em nenhuma hipótese convalidado, nem mesmo pelo trânsito em julgado de sentença contrária à Constituição. Ou seja, seu fundamento primordial reside no princípio da supremacia da Constituição, legitimado principalmente por sua aptidão de afirmar o princípio da legalidade, moralidade e igualdade de todos os cidadãos perante a Lei.

 

São adeptos desta corrente José Augusto Delgado, Humberto Theodoro Junior, Alexandre de Freitas Câmara, Teresa Arruda Alvim Wambier e Cândido Rangel Dinamarco, que assim escreveu sobre o tema:

 

“Onde quer que se tenha uma decisão aberrante de valores, princípios, garantias ou normas superiores, ali ter-se-ão efeitos juridicamente impossíveis e, portanto, não incidirá a autoridade da coisa julgada material – porque, como sempre, não se concebe imunizar efeitos cuja efetivação agrida a ordem jurídico-constitucional.”[13]

 

Já os autores contrários à relativização entendem que a coisa julgada representa realização do princípio da segurança jurídica, como forma de estabilização das relações e pacificação social.

 

E em sendo a segurança jurídica elemento essencial do Estado Democrático de Direito, não é possível admitir a relativização da coisa julgada como instrumento de afastar injustiça[14]. Nesse sentido militam José Carlos Barbosa Moreira, Ovídio Baptista da Silva, Luiz Guilherme Marinoni, Leonardo Grecco e Freddie Didier Jr, dentre outros.

 

Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, citados por Moreira (2017, p. 14)[15] propõem interpretação alternativa para o parágrafo 15 do artigo 525 do CPC/2015. Segundo os consagrados autores, a possibilidade de rescisão da decisão transitada em julgado considerada inconstitucional pelo STF, somente de aplicaria àquelas sentenças que ainda estivessem dentro do prazo de dois anos para sua rescisão.

 

Para todos esses autores, o risco de haver sentença injusta ou inconstitucional é menos grave que o risco de se instaurar insegurança geral com a possibilidade de rescisão a qualquer tempo de decisões transitadas em julgado.

 

Não obstante os debates travados na doutrina sobre o tema e sua importância, entendemos que ao introduzir o parágrafo 15 ao artigo 525 do CPC, o legislador se filiou à corrente favorável à impossibilidade de convalidação da inconstitucionalidade, ainda que sob o pressuposto de consagração do princípio da segurança jurídica.

 

Isto porque a norma do parágrafo 15 do art. 525 do CPC é clara: o termo inicial da ação rescisória é de 2 anos, contados do trânsito em julgado da posterior decisão do STF. Ou seja, a intenção do legislador se coaduna com o entendimento de que a coisa julgada inconstitucional é nula e não pode sobreviver no mundo após o reconhecimento de sua inconstitucionalidade.

 

Em outras palavras, o espírito da norma foi justamente afastar do mundo todos os efeitos da inconstitucionalidade, pois, a supremacia da Constituição não permite eternizar injustiças a pretexto de evitar eternização de incertezas.

 

Acreditamos que esse entendimento é corroborado pelo artigo 27, da Lei 9.868/99:

 

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”

 

Ou seja, é competência exclusiva do STF restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade de uma norma, ou definir o momento a partir de quando a declaração terá eficácia. Se não o fizer, é porque, sopesando seus efeitos, entendeu que sua eficácia retroage a todos os atos judiciais praticados com base na norma inconstitucional.

 

Não à toa, o próprio artigo 525 traz essa disposição expressamente no parágrafo 13:

 

“§13. No caso do § 12, os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal poderão ser modulados no tempo, em atenção à segurança jurídica.”

 

Desta forma, se a Suprema Corte entende necessário limitar no tempo os efeitos da declaração de inconstitucionalidade da norma que deu origem ao título executivo, ela o faz mediante a modulação de seus efeitos.

 

Se, por outro lado, deixa de fazê-lo, é porque entendeu que a gravidade de se permitir a manutenção de uma violação frontal à Constituição Federal representa ela mesma violação à segurança jurídica dos indivíduos, por violar outros preceitos fundamentais.

 

Desta forma, não tendo ocorrido a modulação dos efeitos da decisão do STF, ela se aplica a todas as situações forjadas com base na norma considerada inconstitucional.

 

Não obstante, a constitucionalidade da regra prevista no parágrafo 15 do art. 525 do CPC está sendo discutida no STF. Contudo, até que sobrevenha decisão da Corte, concluímos que é possível a ação rescisória contra sentenças que tenham transitado em julgado, desde que ela seja interposta no prazo de até 2 anos do trânsito em julgado da decisão do STF, que tenha declarado inconstitucional a norma jurídica tomada como seu fundamento.

 

Flavia de Faria Horta Pluchino

 

 

Herança Digital e Direito Sucessório.

 

O desenvolvimento da tecnologia está cada vez mais intenso e presente na sociedade; vivemos a era da revolução digital, em que a forma de se comunicar, socializar, ter acesso às informações se alterou completamente; tendo fomentado importantes transformações, especialmente nos âmbitos do comportamento social, da economia, política e cultura.

 

Em um primeiro momento, para regulamentar essa nova realidade, em nosso país, em 23 de abril de 2014 foi sancionada a Lei nº 12.965, denominada Marco Civil da Internet, que prevê regulamentos básicos, princípios e garantias para o uso da internet no país. Contudo, o diploma legal nada estabeleceu em relação à possibilidade de o acervo e dados digitais poderem ou não compor uma herança.

 

Os bens digitais[16] incorpóreos, com ou não informações de caráter pessoal, podem ter ou não conteúdo econômico. Como exemplo dos bens digitais, podemos mencionar desde criptomoedas [bem com expressão econômica], poemas, textos, fotos de autoria da própria pessoa [estes com proteção dada pela Lei n. 9.610/1998], como vídeos, fotografias de terceiros, base de dados [contatos], que não tenham expressão econômica.

 

Ou seja, existem bens digitais que possuem características nítidas patrimoniais, tais como bibliotecas digitais, jogos online, moedas virtuais, e outros que não tenham nenhuma repercussão econômica, porém carregam o aspecto sentimental dos bens digitais. Como exemplo, podemos mencionar fotos que suscitem lembranças, as mensagens encaminhadas e/ou recebidas por e-mail e os recados inbox nas mídias sociais.

 

GRECO[17] aponta exemplos de bens virtuais valoráveis da seguinte forma:

 

“[…] já que ebooks, músicas baixáveis, fotos digitais, vídeos digitais, contas de redes sociais, assinaturas digitais, softwares baixáveis, aplicativos, nuvens digitais, jogos e cursos online, não raro, são bens onerosos que exigiram do seu titular na época movimentação financeira, superando o suposto entrave econômico, dado que o simples fato de não ser palpável não significa necessariamente que não foi custoso”.

 

Um dos acervos digitais mais conhecidos está na rede do Youtube, em que sua valoração está no ganho que o proprietário da página obtém conforme a quantidade de visualizações de seus vídeos. No caso, o proprietário da página se utiliza da plataforma do Youtube e acumula “seguidores” por meio do conteúdo que divulga; muitas vezes para influenciá-los a comprar um determinado produto ou serviço.

 

Outro exemplo disso é o trabalho do “digital influencer”, ou seja, usuário que influencia sua rede de seguidores através de posts, que podem ser compartilhados e comentados. Muitas empresas, inclusive, pagam para que esse usuário indique seus produtos/serviços, já que ele possui uma enorme quantidade de seguidores, que acompanham seus conteúdos diariamente. Desse modo, a página do influencer passa a ter valor no mercado virtual.

 

A partir de então, questiona-se acerca da possibilidade dos bens digitais se submeterem a sucessão.

 

De início, é necessária a conceituação de patrimônio para a compreensão do direito sucessório, ou seja, o direito de suceder os bens deixados pelo falecido.

 

Na definição de Clóvis Beviláqua[18], patrimônio é “o complexo das relações jurídicas de uma pessoa, que tiver valor econômico”.

 

Já a herança é o conjunto de direitos e obrigações deixados por uma pessoa, que se transmite, desde logo, aos herdeiros legítimos e os testamentários (art. 1.784 do Código Civil).

 

Nesse ínterim, pode-se dizer que a classificação da sucessão é dividida entre sucessão legítima e testamentária. A sucessão legítima é a que ocorre a transmissão da herança de acordo com a lei, isto é, quando o falecido não deixa testamento e é transmitida seguindo a ordem da vocação hereditária. A sucessão testamentária ocorre quando há declaração de última vontade do de cujus por meio de testamento.

 

O testamento, por sua vez, é um ato personalíssimo que só produz efeitos após a morte do testador, podendo ser revogado a qualquer tempo, e a lei não estipula que o testamento deve se limitar aos bens tangíveis ou com expressão econômica, sendo válidas à luz do art. 1.857, § 2º, do Código Civil, disposições testamentárias de caráter não patrimonial.

 

Assim, passadas as considerações acima e recapitulando a definição de bens digitais, este último engloba, portanto, os bens com valoração econômica e os sem valoração econômica. Logo, seguindo esse raciocínio, fica evidente a possibilidade da transmissão dos bens com valoração econômica para aos herdeiros ou legatários, como qualquer outro bem.

 

A controvérsia se baseia, contudo, em relação aos bens sem valoração econômica, mas que tenham apenas caráter sentimental, como fotos e mensagens de e-mail, que depende da existência de disposição de última vontade do falecido, e na falta deste, um respaldo legislativo – que atualmente não há.

 

Caso o falecido não tenha deixado testamento em que tenha se manifestado sobre sua herança digital, os bens digitais se transmitem aos herdeiros? Pela atual redação do Código Civil, entendemos que não.

 

Uma solução jurisprudencial para “atualizar” a legislação em razão da evolução tecnológica para incluir esses bens na sucessão hereditária pode trazer conflitos com o próprio direito de privacidade do de cujus.

 

Imaginemos que o falecido tenha perfil em rede social e/ou canal no Youtube que possui conteúdos particulares e que não deseje que seus herdeiros tenham acesso.

 

É de se destacar, que algumas das redes sociais disponibilizam formulários que possibilitam, ainda em vida, definir como a sua conta será gerenciada após a morte. Essa opção funciona como uma disposição de vontade, porém, a maioria desconhece essa ferramenta.

 

A plataforma do Facebook possui sua própria autorregulamentação e oferece duas opções por meio do aplicativo “If I die” (se eu morrer, em tradução livre). Assim, o usuário escolhe entre manter a conta ativa ou excluída. A opção de manter a conta ativa apenas transforma o perfil do usuário em um memorial. Já a segunda opção autoriza que um representante exclua a conta mediante a comprovação da morte do usuário. Logo, é necessário a indicação de um “herdeiro digital”, a quem será conferido poderes para tanto.

 

O Twitter, conforme regulamento do site, disponibiliza aos familiares baixar todos os tweets públicos e solicitar a exclusão do perfil. Já o Instagram age do mesmo modo que a rede Facebook.

 

No caso do Google, caso o usuário preencha os termos e formulários, pode ser avisado a respeito da morte e se a conta estava programada, a empresa poderá exclui-la automaticamente. No entanto, se essa não for a opção escolhida, o usuário poderá optar por quem irá gerenciar a conta em seu nome e o conteúdo que será compartilhado.

 

Ocorre que, muito embora tais plataformas tentem se basear nas vontades pessoais dos usuários, não há no ordenamento jurídico brasileiro norma específica que regulamente a sucessão de bens digitais. E sem regulamentação jurídica, há um grande obstáculo sobre a destinação dos ativos digitais de pessoas falecidas, ou até mesmo incapacitadas, fazendo com que as demandas ao judiciário aumentem a respeito do tema.

 

Existem quatro projetos de lei, em trâmite perante o Congresso Nacional, para normatizar o assunto; sendo que o mais recente é o PL 3.050/20, cuja finalidade é alterar a redação do art. 1788 do Código Civil, com o acréscimo de um parágrafo único: “Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de qualidade patrimonial contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança.”

 

Ele tem como base um projeto anterior (PL 7.742/2017) que opta pela exclusão das contas online do usuário falecido como a primeira opção em caso de ausência de testamento, com exceção, apenas, dos familiares que poderiam pleitear o acesso a tais contas. Essas medidas viriam expressas com a inclusão de um novo dispositivo de lei ao Marco Civil da Internet. Tal projeto, porém, ainda se encontra na fila de pautas da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática.

 

Tramita também o PL 8.562/2017 e sua proposta traz o texto de um dos primeiros projetos de lei (PL 4.847/2012[19]) a tramitar sobre o assunto, que pretende incluir três novos artigos ao Código Civil de forma a inserir o conceito da herança digital:

 

“Art. 1.797-A. A herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido, tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual, nas condições seguintes:

I – senhas;

II – redes sociais;

III – contas da Internet;

IV – qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido.

 

Art. 1.797 – B. Se o falecido, tendo capacidade para testar, não o tiver feito, a herança será transmitida aos herdeiros legítimos.

 

Art. 1.797 C. Cabe ao herdeiro:

I – definir o destino das contas do falecido;

  1. a) transformá-las em memorial, deixando o acesso restrito a

amigos confirmados e mantendo apenas o conteúdo principal ou;

  1. b) apagar todos os dados do usuário ou;
  2. c) remover a conta do antigo usuário.”

 

O PL 4.099/2012, por sua vez, trata a herança digital no âmbito da sucessão legítima. A ideia é transferir aos herdeiros a liberdade quanto ao seu destino. No caso, seria inserido um parágrafo único ao art. 1.788 do Código Civil com a seguinte redação: “Art. 1.788, parágrafo único. Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais do autor da herança.”[20].

 

É certo que tais discussões e possíveis regulamentações da herança digital trazem relevantes críticas entre a privacidade do de cujus e a atribuição dos bens digitais aos herdeiros, devendo o debate jurídico a respeito deste assunto ser ampliado e aprofundado.

 

De um lado, há a preocupação envolvendo a intimidade e a vida privada da pessoa, no sentido de que “a herança digital deve ser enterrada junto com o falecido”, e, do outro, de criar um caminho possível de atribuição da herança digital aos herdeiros legítimos, naquilo que for possível.

 

Em todo o caso, entendemos ser necessário que o eventual projeto de lei sobre herança digital dialogue com a Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018 (“LGPD”), que dispõe sobre proteção de dados pessoais, para termos harmonia legislativa.

 

Outro caminho, seria fazer constar a impossibilidade de inclusão na herança dos ativos digitais que não possuem valoração econômica (e-mails, perfis em rede social etc.) sem que haja manifestação prévia do falecido, mas, em contrapartida, os ativos digitais que possuem valoração econômica (música, e-book, moeda digital etc.) serem passíveis de inclusão na sucessão hereditária, nos moldes do que já está estabelecido pelo Código Civil vigente.

 

Esse tema provavelmente, será abordado pela comissão de juristas que está a cargo da revisão do Código Civil e que foi instalada em 24 de agosto de 2022 pelo Senado Federal.

 

Até que ocorra a revisão legislativa, recomendamos que as pessoas que têm preocupação com a transmissão de seus bens digitais, deixem testamento a respeito.

 

Aline Hitomi Kawakami Yamaguchi

 

 

 

Todos os direitos reservados – Rodrigo Elian Sanchez Sociedade de Advogados S/S.

 

 

[1] A cobrança do IPTU ou ITR, não se baseia exclusivamente na localização do imóvel [se dentro de área urbana ou de expansão urbana], mas sim também considerando sua destinação econômica, conforme artigo 15 do Decreto-Lei nº 57/66.

[2] TJSP, NSCGJSP, Cap. XX, Item 210.2

[3] Apesar da redação não mencionar, entendemos que também deve ser exibida a certidão dos distribuidores da justiça trabalhista.

[4] TJSP, NSCGJSP, Cap. XX, Item 210.1.

[5] Um exemplo de indisponibilidade legal é a prevista no art. 36 da Lei 6.024/74, que trata dos bens dos administradores das instituições financeiras em intervenção, em liquidação extrajudicial ou em falência.

[6] Ato pelo qual o poder judiciário realiza a individualização e constrição sobre o patrimônio do executado com vistas à garantia da execução, para, na sequência, haver a satisfação. A penhora concede ao credor a preferência, conforme dicção do art. 797 do CPC.

[7] FRANCO, J. Nascimento; GONDO, Nisske. Incorporações Imobiliárias. Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1972, p. 69-70.

[8] A alienação de imóvel cuja penhora está averbada perante a respectiva matrícula é considerada fraudulenta e ineficaz em relação ao exequente (art. 792, III e § 1º, CPC).

[9] TJSP, NSCGJSP, Cap. XX, Item 210.3.

[10] BRANDELLI, Leonardo. Condomínio e Incorporação Imobiliária/Celso Maziteli Neto. 1 º ed. São Paulo, Thomson Reuters Brasil, 2020 (Coleção Direito Imobiliário; vol. VII/coord. Alberto Gentil de Almeida Pedroso), pg. 372.

[11]   CRISTO, Alessandro. Parte do STF admite relativização da coisa julgada. Disponível em https://www.conjur.com.br/2011-mar-29/tres-ministros-stf-admitem-relativizacao-coisa-julgada  Acesso em 19/09/2023.

[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. (Plenário). Disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=307679468&ext=.pdf. Acesso em 15/09/2023.

[13] DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada. In Nova era do processo civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 254.

[14] MARINONI, Luiz Guilherme. A intangibilidade da coisa julgada diante da decisão de inconstitucionalidade: impugnação, rescisória e modulação de efeitos. Revista de Processo. vol. 251. Ano 41. p. 275-307. São Paulo: Ed. RT, jan.2016.

[15] MOREIRA, William Grégori Edl. Ação Rescisória baseada na Inconstitucionalidade Superveniente no NCPC. In < https://bibliodigital.unijui.edu.br/items/c7358c3f-0910-42d0-97b7-6396a60355de> Acesso em 13/06/2023.

[16] LACERDA, Bruno Torquato Zampier. Bens Digitais. Indaiatuba: Editora Foco Jurídico, p. 74, 2017.

[17] GRECO, Pedro Teixeira Pinos. Sucessão de Bens Digitais: Quem tem medo do novo? São Paulo: Revista Síntese Direito de Família. n. 113. maio 2018, p 10.

[18] BEVILAQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. p. 209. Campinas: RED Livros, 1999.

[19] BRASIL. Projeto de Lei nº 4.847, de 2012. Acrescenta o Capítulo II A e os art. 1.797A a 1.797C à Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que “institui o Código Civil”. Disponível em: http://www.camara.gov.br Acesso em: 17 de janeiro de 2023.

[20] BRASIL. Projeto de Lei nº 4.099, de 2012. Altera o art. 1788 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que “institui o Código Civil”. Disponível em: http://www.camara.gov.br Acesso em: 17 de janeiro de 2023.