É POSSÍVEL COMPRAR UM IMÓVEL HIPOTECADO?

O proprietário do imóvel que o dá em garantia hipotecária, conserva o poder de alienar o bem a qualquer tempo. A hipoteca, em razão de sua natureza real, adere à coisa e segue-a por onde ela for. Ou seja, a hipoteca acompanha o imóvel, motivo pelo qual a transferência de titularidade não causa qualquer prejuízo ao credor hipotecário, que não pode, portanto, se opor a ela.

 

Por outro lado e de acordo com o art. 1.475 do Código Civil, é nula a cláusula que proíbe o proprietário de alienar o imóvel hipotecário. É, porém, permitido ao credor convencionar regra, pela qual, em caso de venda do imóvel hipotecado, ocorre o vencimento antecipado da dívida garantida pela hipoteca (§ único, art. 1.475 do CC). Essa é uma cláusula lícita e interessante, pois, possibilita ao credor a satisfação do seu débito, através do acesso ao preço recebido pelo devedor alienante.

 

É de se destacar que ao adquirir um imóvel hipotecado, o comprador deve estar ciente que, no caso de a dívida não ser paga, o imóvel poderá ser sujeito a execução hipotecária e, portanto, é de boa cautela verificar se ela foi ou não quitada.

 

Autoriza a lei (art. 1.481 do Código Civil) que o adquirente do imóvel hipotecado, faça a remição hipotecária (resgate) mediante o pagamento aos credores hipotecários do valor justo do bem, mesmo que inferior ao crédito garantido pela hipoteca. O fato de o resgate poder consumar-se por valor inferior ao da dívida hipotecária, não prejudica os credores hipotecários, porque recebem o mesmo valor que se tivessem levado o imóvel à leilão.

 

Essa hipótese de remição segue procedimento regrado na lei dos registros públicos (art. 266 a 269), que determina que no prazo de trinta dias contados do registro do título aquisitivo perante a matrícula do imóvel, deve o adquirente requerer a citação dos credores hipotecários, para que tomem conhecimento da alienação, bem como proponha o pagamento de valor não inferir ao preço pelo qual adquiriu o imóvel.

 

Caso os credores não se manifestem ou não se oponham ao valor ofertado, terá fixado o preço da remição, que produzirá seus efeitos tão logo ocorra o pagamento ou depósito do preço, sendo que o juiz determinará o cancelamento da(s) hipoteca(s).

 

Em contrapartida e tendo sido apresentada impugnação, procede-se a licitação do imóvel, admitida a participação de qualquer interessado. Adquire o imóvel quem oferecer o maior lance, tendo o adquirente preferência, em igualdade de condições. Caso a licitação seja vencida por terceiro, o título aquisitivo do bem, deverá ser levada a registro. Nesta hipótese, perde eficácia a venda primitiva feita ao adquirente. É, também interessante destacar, que como em um leilão judicial, todos os ônus reais que anteriormente recaiam sobre o imóvel são cancelados.

 

Pago o preço ofertado ou obtido valor pelo qual o imóvel foi arrematado, é determinado o cancelamento de todas as hipotecas mesmo que a importância não seja suficiente para quitar as dívidas garantidas por hipotecas. Os credores que ainda tiverem valores a receber passarão a condição de quirografários.

 

De outro modo e caso o adquirente não tenha optado por remir a(s) hipoteca(s) em até trinta dias do registro do título aquisitivo, no caso de vir a ocorrer execução da hipoteca e não tendo o adquirente se obrigado pessoalmente pela satisfação da dívida, é possível exonerar-se da hipoteca mediante o “abandono do imóvel” (art. 1.479 e 1.480, Código Civil). Deverá o adquirente notificar o vendedor e os credores hipotecários, deferindo-lhes, conjuntamente, a posse do imóvel e, em caso de recusa, depositar o imóvel, em juízo. O credor hipotecário deve receber fração correspondente ao valor que lhe caberia em caso de excussão da hipoteca.

 

Tal prerrogativa, pode ser exercida antes ou depois de iniciado o processo executivo, porém, se após iniciado o processo executivo, o adquirente deverá exercer essa faculdade no prazo decadencial de 24 horas após ter recebido a citação (art. 1.480, § único, CC).

 

Uma outra questão de relevância é da aquisição de imóvel hipotecado pela incorporadora, para financiar o empreendimento. O entendimento jurisprudencial foi consolidado através da Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça, que tem a seguinte dicção: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”.

 

O entendimento jurisprudencial, faz alusão a dois períodos diversos: antes ou depois da celebração do compromisso de compra e venda.

 

Em relação a hipótese da ineficácia da hipoteca, celebrada posteriormente a celebração do compromisso de compra e venda, maiores dificuldades não existem em compreender a razão do enunciado, já que a despeito da promessa de compra e venda não ter sido levada a registro[1], em consonância do princípio da preferência temporal, prevalece o direito pessoal do promitente comprador, tão logo tenha quitado o preço.

 

Já a segunda hipótese, da celebração do compromisso de compra e venda após a constituição da hipoteca o entendimento foi inovador, pois importou na relativização de característica importantíssima dos direitos reais: a sequela e preferência temporal.

 

A súmula 308, neste ponto reflete a jurisprudência formada no emblemático caso da ENCOL[2], pelo qual se deu ênfase a boa-fé objetiva, tendo sido relevante para formar a jurisprudência o argumento de que a incidência da hipoteca na unidade imobiliária, colocava o consumidor adquirente em posição de desvantagem exagerada, pois além de responder pela sua dívida, via-se obrigado a pagar a dívida da incorporadora, de modo a não perder seu imóvel em caso de excussão da hipoteca; o que importaria em transferência abusiva dos riscos do empreendimento ao consumidor, parte vulnerável, que adere ao contrato elaborado pela incorporadora[3].

 

É necessário destacar que é comum nos compromissos de compra e venda para aquisição de unidades em construção (“na planta”) a existência de cláusula mandato, pela qual o adquirente autoriza a constituição em seu nome de hipoteca sobre sua unidade, para financiar a obra. A existência de tal previsão contratual não afastará a incidência do entendimento sedimentado na súmula 308 do STJ, já que referida cláusula, é considerada nula por violação a regra contida no art. 51, VIII, do Código de defesa do Consumidor.

 

A regra contida no art. 51, VIII do Código Consumerista busca afastar situação de evidente conflito de interesses e preceitua que são nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor.

 

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido da nulidade:

 

“Compra e venda de bem imóvel assinada e paga antes do contrato de financiamento entre a construtora e o banco, mediante garantia hipotecária. Ausência de consentimento dos promitentes compradores. Cláusula que institui mandato para esse fim considerada abusiva, a teor do art. 51, VIII, do Código de Defesa do Consumidor. 1. Considerando o Acórdão recorrido que o bem foi comprado e integralmente pago antes do contrato de financiamento com garantia hipotecária, que os adquirentes não autorizaram a constituição de tal gravame, que sequer o mandato foi exercido e, ainda, que é abusiva a cláusula que institui o mandato, a teor do art. 51, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, não existe afronta a nenhum dispositivo sobre a higidez da hipoteca, presente a peculiaridade do cenário descrito. 2. Recurso especial não conhecido. (REsp n. 296.453/RS, relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, julgado em 5/6/2001, DJ de 3/9/2001, p. 222.)”.

 

Uma outra questão de grande relevância é referente ao prazo máximo de vigência da hipoteca, que pode ser de até 30 (trinta) anos da data do contrato (art. 1.485, CC). Neste sentido, as partes podem convencionar livremente o prazo da hipoteca, desde que não ultrapasse esse limite. Por outro lado, nada impede que fixado inicialmente por prazo menor, seja a hipoteca prorrogada por prazo adicional, desde que não se ultrapasse os trinta anos.

 

Referido prazo como bem esclarece Francisco Eduardo Loureiro[4], é decadencial, de modo que não se aplicam as causas impeditivas, interruptivas ou suspensivas aplicadas a prescrição. Disso decorre a possibilidade de a perempção da hipoteca ocorrer antes da prescrição da dívida garantida, que se converterá em quirografária.

 

Ou seja, mesmo existindo a dívida é possível cancelar a hipoteca que onera o imóvel, caso transcorrido o prazo decadencial de 30 anos.

 

A corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo, teve a oportunidade de analisar casos em que a proprietária de imóveis dados em garantia hipotecária, requereu perante o oficial de registro de imóveis o cancelamento de hipoteca, com base no transcurso do prazo convencional, mesmo não tendo a dívida sido paga.

 

A despeito da possibilidade de a garantia hipotecária ser cancelada por perempção, mesmo que a dívida garantida não tenha sido paga ou tenha prescrito, o entendimento que tem prevalecido é que: “Movida a ação de execução hipotecária e promovida a citação do devedor antes do decurso do prazo de perempção, não há como reconhecer, na esfera administrativa, que ocorreu o perecimento do direito do credor hipotecário (TJSP, Corregedor Geral da Justiça José Mário Antonio Cardinale, CG n.º 931/2004, e TJSP Corregedor Geral da Justiça Ricardo Anafe, CG n.º 463/2021).

 

Feita essas breves considerações em relação ao regime hipotecário, verifica-se que não é porque o imóvel está hipotecado que não possa ser adquirido, sendo necessário, porém assessoria legal para evitar maus negócios.

 

 

[1] E de se destacar, que em nosso país, cerca de 50% dos imóveis no País são irregulares, de acordo com os dados do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR). Disponível em: https://anoregam.org.br/2022/06/10/migalhas-crescimento-de-imoveis-irregulares-no-brasil/. Acesso 02. Julho. 2023

Por outro lado, isso acontece pelos mais diversos motivos, independentemente de classe social. Apenas para ter uma noção, o MDR declarou que, dos 60 milhões de domicílios no País, 30 milhões não têm escritura. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/07/28/interna-brasil,774183/imoveis-irregulares-no-brasil.shtml  Acesso 02. Julho. 2023

[2] A Encol foi uma das mais relevantes incorporadoras brasileiras e entrou em colapso no final dos anos 1990 e teve sua falência decretada em 1999, tendo deixado diversos empreendimentos inacabados, como também diversas unidades vendidas na planta, dadas em hipoteca ao sistema financeiro.

[3] STJ: REsp 187.940-SP, 4ª T, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 21.06.1999 e REsp 287.774-DF, 4ª T, Rel. Min, Sálvio De Figueiredo Teixeira, DJ 02.04.2001.

[4] LOUREIRO, Francisco Eduardo; PELUSO, Cezar. Código civil comentado. Coordenador Ministro Cezar Peluso. Barueri: Manole, 14. Ed., p. 1.566, 2020.

 

Rodrigo Elian Sanchez