APURAÇÃO DE HAVERES NA DISSOLUÇÃO PARCIAL DA SOCIEDADE: O STJ E A MUDANÇA DA JURISPRUDÊNCIA.

No caso da retirada de sócio, sua exclusão ou seu falecimento, a apuração dos haveres devidos deve ser calculada conforme previsto no contrato social da sociedade, privilegiando-se, desta forma, os princípios da autonomia da vontade das partes e da força obrigatória dos contratos.

 

Porém, na ausência de estipulação e existindo divergência, essas controvérsias invariavelmente são levadas ao judiciário, já que a utilização de diferentes metodologias de cálculo, podem levar a diferenças brutais nos valores a serem pagos.

 

Existem pelo menos quatro valores que podem ser atribuídos às quotas da sociedade limitada, dependendo dos objetivos da avaliação: (i) valor nominal, (ii) valor de negociação, (iii) valor econômico e (iv) valor patrimonial[1]. Conforme definição de Fábio Ulhoa Coelho, seriam assim definidos:

 

Primeiro. As participações societárias em sociedades limitadas têm valor nominal, resultante da divisão do capital social pelo número de quotas. Se um sócio subscreve 1.000 quotas no valor (nominal) de R$ 1,00 cada, ele é responsável por aportar na sociedade, no ato de constituição do capital o montante de R$ 1.000,00. Segundo. A quota possui valor de negociação, que corresponde àquele que, de um lado, o comprador está disposto a pagar para a titularizar e, de outro, o vendedor concorda em receber para a disponibilizar. Este valor é definido exclusivamente em função do acordo de vontade desses sujeitos de direito. O preço final será fixado a partir de inúmeras variáveis, podendo redundar em ágio ou deságio, a depender das estratégias envolvidas (reposicionamento de concorrentes no mercado, intenção de incremento de capital após a aquisição da sociedade, possibilidade de valorização de marca mediante implementação de estratégias de marketing etc.). Terceiro. A quota pode ser avaliada por especialistas em avaliação de ativos empresariais (bancos de investimentos, contabilistas etc.) com o objetivo de mensurar o valor que seria racional alguém pagar para tornar-se seu titular. É chamado de valor econômico o derivado desta mensuração, feita por modelos de múltiplos ou de fluxo de caixa descontado. Note-se que este valor é calculado pelos experts para nortear negociações. Comprador e vendedor, contudo, sabem de suas necessidades e objetivos e normalmente atribuem às quotas um valor de negociação diferente do econômico. Quarto. A quota tem, por fim, valor patrimonial, que é a divisão do patrimônio líquido da sociedade pelo número de quotas. O valor patrimonial, por sua vez, desdobra-se em três categorias, dependendo da natureza do balanço que mensura o valor do patrimônio líquido da sociedade: (a) valor patrimonial contábil (balanço periódico); (b) valor patrimonial contábil em data presente (balanço especial); (c) valor patrimonial real (balanço de determinação).

 

Até recentemente o entendimento consolidado na jurisprudência era no sentido de que o mais adequado para o cálculo dos haveres seria a utilização da metodologia do fluxo de caixa descontado.

 

Neste sentido:

 

“DIREITO EMPRESARIAL. DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE POR QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA. SÓCIO DISSIDENTE. CRITÉRIOS PARA APURAÇÃO DE HAVERES. BALANÇO DE DETERMINAÇÃO. FLUXO DE CAIXA. 1. Na dissolução parcial de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, o critério previsto no contrato social para a apuração dos haveres do sócio retirante somente prevalecerá se houver consenso entre as partes quanto ao resultado alcançado. 2. Em caso de dissenso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça está consolidada no sentido de que o balanço de determinação é o critério que melhor reflete o valor patrimonial da empresa. 3. O fluxo de caixa descontado, por representar a metodologia que melhor revela a situação econômica e a capacidade de geração de riqueza de uma empresa, pode ser aplicado juntamente com o balanço de determinação na apuração de haveres do sócio dissidente. 4. Recurso especial desprovido. (REsp 1335619/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/03/2015, DJe 27/03/2015).”

 

É de se destacar, que o fluxo de caixa descontado avalia o negócio em si e, portanto, leva em conta a capacidade da sociedade gerar receitas [projeção de caixa] para cinco ou dez anos, trazidos a valor presente, mais um valor residual a título de perpetuidade. É, portanto, método que parte de uma aposta de que determinada sociedade continuará a se comportar de certa maneira no futuro, com certa rentabilidade, estável ou crescente, muitas vezes discrepantes quanto ao real desempenho futuro da sociedade. É de se destacar, que inúmeras incertezas podem comprometer tal expectativa, como taxa de crescimento do PIB, taxa de juros, desemprego etc.

 

Ou seja, enquanto o valor econômico apura o negócio e a projeção de gerar receitas, o valor patrimonial afere o valor de mercado dos ativos da sociedade, incluindo o estabelecimento comercial.

 

Contudo e apesar da jurisprudência há longos anos estar consolidada no sentido da utilização da metodologia do fluxo de caixa descontado para apuração de haveres, em caso de dissolução parcial de sociedade, a legislação pátria estabelece que no caso de inexistência de definição no contrato social, a apuração dos haveres deve ser realizada com base no valor patrimonial, conforme artigo 1.031 do Código Civil e artigo 606 do Código de Processo Civil:

 

“Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado”.

 

“Art. 606. Em caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma. (…)”.

 

Ou seja, o critério consagrado na jurisprudência dos tribunais era dissonante do estabelecido em lei. Em boa hora, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), no âmbito do julgamento do Recurso Especial 1.877.331-SP (“REsp STJ”), ocorrido em 13 de abril de 2021, alterou referido entendimento e estabeleceu que os haveres devem ser apurados com base no valor patrimonial aferido no âmbito do balanço de determinação.

Em seu voto vencedor, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, fundamentou  a obediência ao critério legal (patrimonial) por considerar o mais acertado, ao passo que o econômico (do qual deflui a metodologia do fluxo de caixa descontado), além de ser inadequado para o contexto da apuração de haveres, pode ensejar consequências perniciosas, tais como (i) desestímulo ao cumprimento dos deveres dos sócios minoritários; (ii) incentivo ao exercício do direito de retirada, em prejuízo da estabilidade das empresas, e (iii) enriquecimento indevido do sócio desligado em detrimento daqueles que permanecem na sociedade.

 

O Ministro ainda destacou que, o reembolso do sócio desligado em função das perspectivas de rentabilidade da sociedade implica sérias contradições, pois o sócio desligado, nesse caso, terá assegurado um retorno ao investimento sem estar correndo os riscos correspondentes. Isto é, a partir da resolução parcial da sociedade, ele deixa de ser sócio e, consequentemente, não corre mais nenhum risco empresarial em relação àquela empresa. A metodologia econômica de avaliação procura quantificar exatamente o retorno que o investimento naquela sociedade tende a proporcionar, num prazo definido, a quem for sócio dela. Mas esse retorno pode ou não existir, em razão dos riscos próprios da atividade empresarial. Trata-se de simples estimativa. Com a adoção do critério econômico na apuração de haveres, o sócio desligado tem assegurado um retorno projetado de um investimento sem correr minimamente o risco correspondente, o que não é razoável.

 

Em complemento e na ausência de previsão no contrato social, os haveres devem ser pagos ao sócio retirante, excluído ou aos herdeiros do falecido, em até 90 dias, sendo os efeitos da utilização da metodologia do fluxo de caixa descontado mais perversa a danosa, pois a sociedade deverá desembolsar, em tal prazo, quantia disponível atualmente em seu caixa para pagamento de haveres calculados com base em prováveis rendimentos futuros e sem que o sócio retirante suporte os riscos futuros.

 

Neste sentido, entendemos que a alteração da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça foi salutar, especialmente levando em conta a preservação da empresa, princípio fundamental do moderno direito societário.

 

Rodrigo Elian Sanchez

 

[1] Coelho, Fábio Ulhoa. O valor patrimonial das quotas da sociedade limitada. In: Novos estudos de direito comercial em homenagem a Celso Barbi Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2003, págs. 59-60.