A IMPOSSIBILIDADE DA APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DAS REGRAS DA SOCIEDADE SIMPLES PARA AFASTAR A LIMITAÇÃO DE RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS DE SOCIEDADE LIMITADA.

Recentemente, o TJSP, ao julgar o agravo de instrumento nº 2141291-22.2021.8.26.0000, deu provimento ao recurso, para incluir os sócios de sociedade limitada no polo passivo de ação executiva, de modo a responderem, com seus bens particulares pelas dívidas da sociedade. Transcrevemos a ementa:

“Execução – Pretendida pela agravante a inclusão dos sócios da agravada no polo passivo da demanda – Indícios veementes de desativação da sociedade devedora, com a sua consequente dissolução e liquidação irregular – Fato que afasta a responsabilidade limitada dos sócios, devendo eles responder ilimitadamente por todo o passivo pendente da sociedade – Responsabilidade subsidiária – Admissibilidade de afetação do patrimônio dos sócios da empresa executada – Art. 1.023, 1.024 e 1.080 do CC – Deferida a inclusão dos sócios da agravada no polo passivo da ação executiva – Agravo provido, mas por fundamentação diversa.” (TJSP, 23ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. José Marcos Marrone, v.u., data do julgamento 9 de fevereiro de 2022).

 

Na origem, tratou-se de ação de execução movida por uma sociedade limitada em desfavor de outra, para recebimento de dívida fundada em título executivo extrajudicial. Após o Juízo de 1ª instância indeferir o pedido de desconsideração da personalidade jurídica da devedora, para que seus sócios fossem incluídos no polo passivo da lide e respondessem com seus bens particulares pela dívida da sociedade, foi interposto perante o TJSP, recurso de agravo de instrumento.

 

Para a credora, o fato de os sócios da devedora possuírem várias empresas no mesmo ramo de atuação, com composições societárias idênticas, faria presumir o desvio de finalidade que autorizaria a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

 

No julgamento do recurso, apesar de reconhecer estarem ausentes o desvio de finalidade e a confusão patrimonial, a Turma Julgadora entendeu que a ausência de faturamento da devedora e de ativos capazes de fazer frente à dívida, representaria encerramento irregular da sociedade que, por si só, autorizaria a relativização da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, por configurar responsabilidade subsidiária do sócio, por força dos arts. 1.023, 1.024 e 1.080, todos do Código Civil. Com base neste fundamento, deu provimento ao recurso.

 

Diante da decisão do TJSP, o presente artigo busca, sem pretensão de esgotar o tema, debater se caberia a aplicação subsidiária das normas da sociedade simples para afastar a limitação da responsabilidade dos sócios de sociedade limitada.

 

Segundo o dicionário Aulete Digital[1], subsidiário é aquilo que subsidia, auxilia. Para o direito, o princípio da subsidiariedade determina a aplicação residual de uma lei às hipóteses que não sejam objeto de regulação de outra norma e desde que sejam compatíveis.

 

A aplicação de uma norma subsidiariamente à outra dar-se-á, portanto, quando inexistir norma específica regulamentando determinada situação concreta. O próprio art. 1.053, do Código Civil, utilizado pelo Tribunal como fundamento do acórdão, é taxativo:

 

“Art. 1.053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples”.

 

Ou seja, quando se observar lacunas ou omissões nas normas que regem situações concretas das sociedades limitadas, fica permitida a aplicação das normas da sociedade simples, nos casos em que elas sejam compatíveis com a natureza e os princípios da sociedade limitada.

 

Pois bem. No caso das sociedades limitadas, toda a matéria evolvendo a responsabilidade dos sócios possui regulação específica nos arts. 1.052, 1.055, §1º e 1.080, todos do Código Civil.

 

Em sua essência, a responsabilidade dos sócios neste tipo societário é restrita ao capital que cada um investiu na sociedade. Isto é assim, porque assim quis o legislador, como forma de estimular a atividade econômica, pois, na medida em que empreender é uma atividade de risco, ao predefinir o limite das perdas do empreendedor em caso de insucesso do negócio, há um encorajamento do exercício desta atividade, essencial para o desenvolvimento do país. Além disso, a redução dos riscos do empreendedor, permite a redução do custo e, consequentemente, dos preços dos produtos e serviços.

 

Sobre o tema, Fábio Ulhôa Coelho assim leciona:

 

“À limitação da responsabilidade dos sócios, na limitada, corresponde a regra jurídica de estímulo à exploração das atividades econômicas. (…) De fato, poucas pessoas – ou nenhuma – dedicar-se-iam a organizar novas empresas se o insucesso da iniciativa pudesse redundar a perda de todo o patrimônio, amealhado ao longo de anos de trabalho e investimento, de uma ou mais gerações. A limitação da responsabilidade do empreendedor ao montante investido na empresa é condição jurídica indispensável, na ordem capitalista, à disciplina da atividade de produção e circulação de bens ou serviços.” [2]

 

As exceções à regra da limitação da responsabilidade dos sócios na sociedade limitada também se encontram expressamente previstas na Lei adjetiva, no capítulo próprio das sociedades limitadas, a saber: até que o capital social esteja totalmente integralizado, a teor do que dispõe o art. 1.052; pela avaliação feitas pelos sócios dos bens com que o capital social foi integralizado, pelo prazo de 5 (cinco) anos; e nas deliberações sociais que infrinjam a Lei ou o contrato social, como determina o art. 1.080.

 

Nestes casos, a solidariedade dos sócios pelas obrigações sociais é automática, pois autorizada por disposição legal obrigatória.

 

Afora estas hipóteses, a única forma de transferir aos sócios a responsabilidade pelas dívidas e obrigações da sociedade, é através da desconsideração da personalidade jurídica, nos termos do art. 50, do código e observado o procedimento previsto nos arts. 133 a 137, do Código de Processo Civil.

 

Para tanto, caberá à parte que busca atingir os bens pessoais dos sócios demonstrar o abuso da personalidade jurídica, por desvio de finalidade ou por confusão patrimonial, em procedimento próprio para este fim, onde sejam assegurados a ampla defesa e o contraditório das partes envolvidas.

 

Assim, se as normas da sociedade limitada regulamentam integralmente a responsabilidade dos sócios neste tipo societário, inclusive quanto às exceções à regra da limitação ao valor do capital investido, não se verifica lacuna ou omissão na Lei que autorize a aplicação subsidiária das regras das sociedades simples a este tema específico.

 

Desta forma, resta equivocado o entendimento exarado no acórdão analisado, pois não poderia incluir os sócios da devedora no polo passivo da demanda executiva, com fundamento em reponsabilidade subsidiária prevista nos artigos 1.023 e 1.024 do Código Civil.

 

Por outro lado, é certo que a situação fática do caso concreto não se subsome à norma jurídica descrita pelo art. 1.080, do CC.

 

Isto porque, a ausência de ativos ou de faturamento não caracteriza deliberação contrária à Lei ou ao contrato social. Com efeito, a sociedade devedora nunca foi dissolvida, nem mesmo irregularmente, sendo certo que o mero insucesso do empreendimento não justifica a transferência das obrigações sociais aos sócios.

Flávia de Faria Horta Pluchino

 

[1] In Aulete Digital. Disponível em <Dicionário Online – Dicionário Caldas Aulete – Significado de subsidiário> Acesso em 15/05/2022.

[2] COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 413.