Sem prova de uso inadequado, fornecedor tem o dever de reparar produto e até o fim da vida útil, ou seja, a responsabilidade pode ir além do prazo de garantia contratual

Quem nunca se deparou com a seguinte situação: adquire um produto durável[1] e, em um espaço de tempo relativamente curto (menos de 5 anos), é surpreendido com a quebra de algum componente cujo custo de reparo é equivalente ao preço de um produto novo?

Sabe-se que, via de regra, os fornecedores e fabricantes têm responsabilidade durante o prazo de garantia que, em linhas gerais, divide-se em dois tipos: (i) garantia legal prevendo que os vícios de fácil constatação devem ser alegados em até 30 dias, tratando-se de serviços ou produtos não duráveis e, 90 dias, tratando-se de serviços ou produtos duráveis. (ii) garantia contratual, oferecida pelo fornecedor/fabricante, por mera liberalidade, e cujo prazo varia de acordo com a vida útil.

É de se imaginar que, na atividade empresarial, ou seja, atividade que visa o lucro, a garantia contratual oferecida por mera liberalidade, não seja maior do que o prazo mínimo estimado de vida útil do produto.

Ou seja, não são raras as situações em que, logo após a expiração do prazo de garantia contratual, um produto apresente defeito que exija seu reparo, que, também não raras vezes, o custo é próximo ao de um produto similar, novo.

O problema, portanto, se materializa quando um determinado vício se revela justamente logo após o prazo de garantia contratual ter expirado. Mesmo que o consumidor tenha certeza de que sempre utilizou aquele determinado produto observando todas as recomendações do fornecedor/fabricante, se tentar exigir que seja feito o reparo sem custo, certamente, ficará frustrado

Porém, reconhecendo que sem prova de uso inadequado, o fornecedor/fabricante deve reparar o produto até fim da vida útil, o STJ garantiu que uma consumidora tenha seus produtos eletrodomésticos reparados dos defeitos surgidos durante o período de vida útil, mesmo que o vício tenha ocorrido após o fim da garantia contratual (REsp 1.787.287).

O caso é interessante: ao analisá-lo, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, decidiu que “exaurida de há muito a garantia legal e contratual, a fornecedora e revendedora não se obrigam à substituição nem respondem pelos reparos nos eletrodomésticos vendidos”.

A consumidora, inconformada, recorreu ao STJ, argumentando, entre outras questões processuais, que o ônus da prova quanto ao prazo de vida útil do produto e a existência do vício, seria exclusivamente da parte recorrida (fabricante), e que ela não teria se desincumbido de tal ônus (de provar que a vida útil teria se exaurido, e que o vício apresentado seria sua consequência direta).

Para reconhecer a responsabilidade do fornecedor, mesmo após o decurso do prazo de garantia contratual, o STJ inicia, citando decisão proferida em 04/10/2012 (REsp 984.106/SC), na qual foi assentado o seguinte: “por óbvio, o fornecedor não está, ad aeternum, responsável pelos produtos colocados em circulação, mas sua responsabilidade não se limita pura e simplesmente ao prazo contratual de garantia, o qual é estipulado unilateralmente por ele próprio. Deve ser considerada para a aferição da responsabilidade do fornecedor a natureza do vício que inquinou o produto, mesmo que tenha ele se manifestado somente ao término da garantia”.

O STJ reforçou que, na decisão acima, foi também assentado que “o ônus da prova quanto à natureza do vício cabe ao fornecedor porque milita em favor do consumidor eventual déficit em matéria probatória“.

E arrematou, afirmando que, a dificuldade apresenta-se quando o defeito aparece após o prazo de garantia contratual, e que, nessas situações, em virtude da ausência de um prazo legal preestabelecido para limitar a responsabilidade do fornecedor, consagrou-se, a partir de valiosos provimentos doutrinários, o entendimento de que o fornecedor não é eternamente responsável pelos vícios observados nos produtos colocados em circulação, mas a sua responsabilidade deve ser ponderada, de forma casuística, pelo magistrado, a partir do conceito de “vida útil do produto”, assim definida:

“(…) Cuidando-se de vício aparente, é certo que o consumidor deve exigir a reparação no prazo de noventa dias, em se tratando de produtos duráveis, iniciando a contagem a partir da entrega efetiva do bem e não fluindo o citado prazo durante a garantia contratual.

Porém, em se tratando de vício oculto não decorrente do desgaste natural gerado pela fruição ordinária do produto, mas da própria fabricação, e relativo a projeto, cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros, o prazo para reclamar pela reparação se inicia no momento em que ficar evidenciado o defeito, não obstante tenha isso ocorrido depois de expirado o prazo contratual de garantia, devendo ter-se sempre em vista o critério da vida útil do bem, que se pretende seja ele ‘durável’.

A doutrina consumerista – sem desconsiderar a existência de entendimento contrário, como antes citado – tem entendido que o Código de Defesa do Consumidor, no § 3º do art. 26, no que concerne à disciplina do vício oculto, adotou o critério da vida útil do bem, e não o critério da garantia, podendo o fornecedor se responsabilizar pelo vício em um espaço largo de tempo, mesmo depois de expirada a garantia contratual.

Confira-se:

Um dos maiores avanços concedidos pelo CDC em relação ao CC/1916 – e nem sempre percebido pela doutrina – foi conferido pelo disposto no § 3º do art. 26 da Lei 8.078/1990, ao estabelecer, sem fixar previamente um limite temporal, que, ‘tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito’

O dispositivo possibilita que a garantia legal se estenda, conforme o caso, a três, quatro ou cinco anos após a aquisição. Isso é possível porque não há – propositalmente – expressa indicação do prazo máximo para aparecimento do vício oculto, a exemplo da disciplina do Código Civil (§ 1º do art. 445).

Desse modo, o critério para delimitação do prazo máximo de aparecimento do vício oculto passa a ser o da vida útil do bem, o que, além de conferir ampla flexibilidade ao julgador, revela a importância da análise do caso concreto em que o fator tempo é apenas um dos elementos a ser apreciado.

Autorizada doutrina sustenta a aplicação do critério da vida útil como limite temporal para o surgimento do vício oculto.

A propósito, Cláudia Lima Marques observa: ‘Se o vício é oculto, porque se manifestou somente com o uso, experimentação do produto ou porque se evidenciará muito tempo após a tradição, o limite temporal da garantia legal está em aberto, seu termo inicial, segundo o § 3º do art. 26, é a descoberta do vício.

Somente a partir da descoberta do vício (talvez meses ou anos após o contrato) é que passarão a correr os 30 ou 90 dias. Será, então, a nova garantia eterna? Não, os bens de consumo possuem uma durabilidade determinada. É a chamada vida útil do produto’ (Contratos, p. 1196-1197).

Na mesma linha é a posição de Herman Benjamin, que sintetiza: ‘Diante de um vício oculto qualquer juiz vai sempre atuar causidicamente. Aliás, como faz em outros sistemas legislativos. A vida útil do produto ou serviço será um dado relevante na apreciação da garantia‘ (Comentários, p. 134-135).

Antes de concluir, observa, com propriedade: ‘O legislador, na disciplina desta matéria, não tinha, de fato, muitas opções.

De um lado, poderia estabelecer um prazo totalmente arbitrário para a garantia, abrangendo todo e qualquer produto ou serviço. Por exemplo, seis meses (e por que não dez anos?) a contar da entrega do bem. De outro lado, poderia deixar – como deixou – que o prazo (trinta ou noventa dias) passasse a correr somente no momento em que o vício se manifestasse.

Esta última hipótese, a adotada pelo legislador, tem prós e contras. Falta-lhe objetividade e pode dar ensejo a abusos. E estes podem encarecer desnecessariamente os produtos e serviços. Mas é ela a única realista, reconhecendo que muito pouco é uniforme entre os incontáveis produtos e serviços oferecidos no mercado’ (Comentários, p. 134).

[…]

Portanto, embora os prazos decadenciais para reclamar de vícios redibitórios em imóveis, tanto no CC/1916 (180 dias) como no CC/2002 (1 ano), sejam mais amplos do que o prazo previsto no CDC (90 dias), a disciplina do CDC analisada de maneira integral é mais vantajosa.

O critério da vida útil confere coerência ao ordenamento jurídico e prestigia o projeto constitucional de defesa do consumidor, considerando sua vulnerabilidade no mercado de consumo (BESSA, Leonardo Roscoe. BENJAMIN, Antônio Herman V. [et. al.]. Manual de direito do consumidor. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, pp. 203-205).”

E então o STJ conclui, apoiado em forte jurisprudência, que a compreensão de que o § 3º do art. 26 do CDC, no que concerne à disciplina do vício oculto, adotou o critério da vida útil do bem, podendo o fornecedor se responsabilizar pelo vício mesmo depois de expirada a garantia contratual.

Portanto, em se tratando de bem de consumo durável, em casos de vícios que aparecerem durante o período de vida útil, e não havendo prova (o que dependerá de processo judicial) de que o mau funcionamento decorra do uso inadequado pelo consumidor, o entendimento é de que o fornecedor é, sim, responsável e deve reparar o dano.

Marcelo Barretto Ferreira da Silva Filho

 

[1] Bens de Consumo Duráveis: Bens materiais destinados a satisfazer necessidades humanas e que tem uma vida útil relativamente longa. Exemplos: Automóveis, mobiliário, eletrodomésticos etc.