O Sistema de Precedentes Judiciais e a Ação Rescisória
É valor imanente à qualquer sistema jurídico a estabilidade das relações jurídicas. Neste sentido e em nosso país a garantia da “coisa julgada” foi alçada ao patamar de cláusula pétrea (art. 5°, XXXVI, CF/88). Em apertada síntese, a coisa julgada é atributo pelo qual se torna imutável e indiscutível a decisão de mérito3, não mais sujeita a recurso.
Se percebe, portanto, que a garantia da coisa julgada está intimamente ligada ao princípio da segurança jurídica, na medida em que promove confiança e fornece previsibilidade, esta última entendida como cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade. Ou seja, é preciso que as pessoas tenham acesso aos possíveis significados dos textos normativos, que seja assegurada a estabilidade das situações jurídicas consolidadas, bem como que os cidadãos possam visualizar as consequências jurídicas de seus atos4.
A coisa julgada, cumpre parte deste escopo ao garantir que após o exercício pleno do contraditório, a decisão final de mérito da qual não caiba mais recursos não poderá ser revista.
À despeito de tal garantia, a lei em hipóteses excepcionais permite a desconstituição da coisa julgada, podendo ser realizado novo julgamento do caso, através da ação rescisória.
As hipóteses de cabimento da ação rescisória (meio autônomo de impugnação) sempre foram restritas, porém este exíguo rol sofreu recentes alterações. Na vigência do Código de Processo Civil de 1973, cabia ação rescisória quando a sentença de mérito houvesse violado literal disposição de lei (art. 485, CPC/73). Entretanto e com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015 (art. 966, V) a ação rescisória passou a ser cabível quando a decisão “violar manifestamente norma jurídica”.
Ou seja, o CPC/2015 deu novo enfoque ao admitir o cabimento quando a violação literal se der à norma jurídica, o que foi comemorado por boa parte da doutrina que entendia que o texto do CPC de 1973 estava ultrapassado, desconsiderando, inclusive, que a norma jurídica é extraída através de atividade lógica interpretativa. Muitas vezes para se extrair o significado de uma norma o intérprete se vale de técnicas hermenêuticas como também se guia pelos vetores axiológicos contidos no ordenamento jurídico.
Questão significativa é que se a violação literal deixou de ser a texto de lei e passou a ser de norma jurídica, a redação dada pelo CPC/2015 passou a permitir o cabimento da ação rescisória quando a decisão a ser rescindida violar precedente obrigatório. O precedente obrigatório é uma espécie de norma jurídica delineada pelos tribunais, quando do julgamento de determinado caso concreto, porém cujos efeitos se irradiam para além daquele caso piloto.
Por outro lado, a redação dada pelo Código de Processo Civil de 2015 ao incisivo V do art. 966 demonstra a relevância sistêmica que o legislador concedeu ao sistema de precedentes brasileiros.
Ou seja, atualmente a ação rescisória é cabível em qualquer hipótese de violação manifesta de norma jurídica; o que incluiu inclusive normas não expressas literalmente nos textos legais, mas relevados pela interpretação, como os princípios (o gênero norma jurídica, abarca tanto as espécies: regras e princípios).
Porém, e para que seja admitida a ação rescisória, a violação deve ser manifesta, ou seja, a afronta à norma deve ser possivel de ser verificada de imediato, sem a necessidade de reexame de provas ou produção de novas.
Por outro lado, sabemos, que a lei pode conter mais de uma interpretação válida, sendo, portanto, necessário que dentre os resultados interpretativos possíveis, para se garantir a unidade do direito, que os tribunais pacifiquem a atividade interpretativa. Tal função pode ser exercida pelo Supremo Tribunal Federal através da edição de súmulas vinculantes, ou pelo próprio Supremo ou demais tribunais através da fixação de precedentes obrigatórios. Os precedentes obrigatórios, nada mais são que os julgamentos de casos concretos de onde se formula razões generalizáveis, a serem aplicadas em casos semelhantes5.
Se houver por exemplo, precedente formado pelo Superior Tribunal de Justiça ao julgar recurso especial repetitivo, dando interpretação à norma federal, os demais juízes deverão obrigatoriamente observar tal entendimento no julgamento de casos semelhantes, no futuro.
Assim é suscetível de ser rescindida a decisão que desrespeitar o entendimento fixado pelo STJ ou até que aplicou erroneamente o precedente, adotando as suas razões de decidir em caso que apresentava elementos distintos do caso piloto (art. 966, §5°, CPC/2015).
É importante, porém observar, que se após uma dada sentença transitar em julgado, vier à ser fixado precedente que seja divergente da solução dada pela referida sentença, não é cabível a ação rescisória, já que o precedente não pode retroagir para atingir situações pretéritas, sob pena de violação do princípio da segurança jurídica.
Obviamente que a decisão dada no caso concreto mesmo que em desconformidade com futuro precedente, deve estar dentro das interpretações plausíveis do texto legal, conforme entendimento sumulado o verbete 343 do STF, pelo qual havendo divergência interpretativa ao tempo em que proferida a decisão rescindenda, não cabe ação rescisória fundada em violação de norma jurídica (Supremo Tribunal Federal - RE 590.809/RS).
Ou seja, se na ocasião em que foi proferida uma sentença existiam três correntes interpretativas para um artigo da lei federal, e o juiz adotou uma destas correntes para fundamentar a sentença, a mesma não poderá ser revista, mesmo que precedente futuro venha a adotar como correta outra corrente interpretativa. Caso diverso é quando o juiz ao prolatar a sentença, tenha adotado entendimento contrário as todas as correntes interpretativas controvertidas nos tribunais na ocasião.
Nesta última hipótese, seria caso de se rescindir a sentença, se for fixado precedente com entendimento divergente da solução adotada na sentença rescindenda, já que a sentença não se lastreava em uma das correntes interpretativas consideradas como “válidas” pelos tribunais, na época.
Por fim, cabe destacar que em relação a impossibilidade de retroatividade dos precedentes quando a decisão rescindenda tiver se fundamentado em interpretação controvertida nos tribunais comporta uma exceção; é a hipótese de a sentença ter se fundamentado em lei ou ato normativo considerado posteriormente inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em que caberá a ação rescisória, em até dois anos contados do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (art. 525, § 15°, CPC).
A exceção é admitida em razão da importância da preservação da autoridade do texto constitucional, hipótese em que se admite mitigar a estabilidade do julgado para evitar que uma decisão contrária literalmente a constituição continue a produzir efeitos, o que é mais sensível em casos de relação continuada (ex. sentença que condena ao pagamento de alimentos).
Em resumo, com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015 foi concedido destaque aos precedentes judiciais, alçando sua violação as hipóteses excepcionais de cabimento da ação rescisória, o que merece ser observado pelos operadores do direito, estrategicamente, no aconselhamento e condução de casos nos tribunais.
Rodrigo Elian Sanchez