A (IM)PENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR DO CONTRATO DE LOCAÇÃO COMERCIAL E O RE 605.709 DO STF.

De acordo com a legislação brasileira o fiador do contrato de locação não tem a proteção da impenhorabilidade do bem de família.

 

Tal possibilidade, advém da lei de locações urbanas (Lei n.° 8.245/91) ter alterado a redação do art. 3° da Lei n° 8.009/1990 (que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família), e ter incluído entre as exceções a impenhorabilidade, a obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

 

Em outras palavras, existindo débito locatício, o fiador poderá responder, inclusive, com seu imóvel residencial, que poderá ser penhorado e posteriormente leiloado ou adjudicado, para quitação do débito locatício.

 

Tal regra foi convalidada pela jurisprudência, tendo sido sua inconstitucionalidade, arguida intensamente perante os tribunais de justiça estaduais.  Alguns processos que tratavam desta questão chegaram até os tribunais superiores: STJ e STF.

 

A questão é realmente de alta indagação, diante dos direitos que estão em jogo. Não são poucos os que defendem que o cidadão não se pode despojar o fiador e sua família do refúgio de sua residência para, mediante expropriação forçada, converter o bem de família em pecúnia, a fim de satisfazer o crédito do locador. Nessa linha de pensamento, se autorizada a penhora do bem de família do fiador, estaria por esvaziar o princípio da solidariedade e a absoluta indiferença com a dignidade do garantidor e sua família, diante da sobreposição de um direito disponível – crédito – sobre um direito fundamental – moradia.

 

Contudo, a jurisprudência da Suprema Corte firmou-se no sentido da constitucionalidade do artigo 3º, inciso VII, da Lei n. 8.009/1990, em face do artigo 6º da Constituição Federal, que consagra o direito à moradia.

 

“FIADOR. Locação. Ação de despejo. Sentença de procedência. Execução. Responsabilidade solidária pelos débitos do afiançado. Penhora de seu imóvel residencial. Bem de família. Admissibilidade. Inexistência de afronta ao direito de moradia, previsto no art. 6º da CF. Constitucionalidade do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009/90, com a redação da Lei nº 8.245/91. Recurso extraordinário desprovido. Votos vencidos. A penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação, objeto do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009, de 23 de março de 1990, com a redação da Lei nº 8.245, de 15 de outubro de 1991, não ofende o art. 6º da Constituição da República.” (RE 407.688, Rel. Min. CEZAR PELUSO, TRIBUNAL PLENO, DJ 06.10.2006)”.

 

 

Ainda o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, em 2010, ao julgar o recurso paradigma RE 612.360, resolveu a questão, em sede de repercussão geral (tema 295/STF) tendo firmado a seguinte tese:

 

 

É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no art. 3°, VII, da lei 8.009/90 com o direito à moradia consagrado no art. 6° da CF, com redação da EC 26/20“.

 

 

Posteriormente, a segunda seção do Superior Tribunal de Justiça, em 2014, ao julgar o REsp 1363368/MS pela sistemática dos recursos repetitivos (tema 708/STJ) também entendeu legítima a penhora do bem de família do fiador de contrato de locação, tendo fixado a seguinte tese:

 

“É legítima a penhora de apontado bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, ante o que dispõe o art. 3º, inciso VII, da lei 8.009/90”.

 

A “pá de cal” veio em 2015, quando o Superior Tribunal de Justiça pacificou de vez a questão com a publicação da súmula 549: É válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação“.

 

Os precedentes do STJ, tanto o REsp 1.363.368/MS, que serviu de paradigma para o tema 708/STJ, quanto os recursos: AgRg no AREsp 624.111/SP; REsp 1.363.368/MS; AgRg no AREsp 160.852/SP; AgRg no AREsp 31.070/SP; AgRg no Ag 1.181.586/PR; e AgRg no REsp 1.088.962/DF, tiveram, na origem, a possibilidade da penhora do bem de família do fiador em locação comercial.

 

A questão estava pacificada, quando em 12 de junho de 2018, a 1ª turma do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 605.709,  aplicou o distinguishing[1], conheceu referido recurso e deu provimento por entender que os precedentes do STF tratavam de casos em que a penhorabilidade do bem de família do fiador tinha como origem contratos de locação residenciais, sendo que o caso versado no RE 605.709 se tratava de hipótese diversa: contrato de locação comercial.

 

Em resumo, em referido julgamento, o STF reviu sua posição e declarou inconstitucional a penhora do bem de família do fiador de contrato de locação comercial, mesmo que a Lei de locações urbanas não faça distinção entre a locação residencial e comercial.  A decisão se deu pela maioria de 3 x 2, tendo votado pela tese vencedora a Ministra Rosa Weber, Redatora para o acórdão, vencidos os Ministros Dias Toffoli, Relator, e Luís Roberto Barroso.

 

Em face de tal acórdão foi interposto embargos de divergência, tendo sido suscitado que o julgamento diverge do precedente fixado pelo próprio Supremo Tribunal Federal, no RE 612.360, processo paradigma que originou o Tema n. 295, que tratava especificamente de locação de imóvel comercial. Tal recurso está pendente de julgamento.

 

Não obstante, a decisão do STF no RE 605.709 já tem causado grande insegurança jurídica no mercado de locações urbanas. Isso porque, a jurisprudência que era pacífica até recentemente, já apresenta divergências:

 

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. Ação de Despejo c.c. Cobrança. Locação não residencial. Fase de cumprimento de sentença. Penhora que recaiu sobre imóvel de propriedade da fiadora coexecutada, que opõe Exceção de Pré-executividade, com arguição de impenhorabilidade do bem, sustentando tratar-se de “bem de família”. Decisão que rejeita a Exceção, autorizando o prosseguimento do cumprimento de sentença. INCONFORMISMO deduzido no Recurso. ACOLHIMENTO. Direito fundamental à moradia que se sobrepõe aos interesses da livre iniciativa, justificando-se a prevalência da impenhorabilidade do “bem de família”, a despeito da previsão do artigo 3º, inciso VII, da Lei nº 8.009/90, por versar a execução débito decorrente de locação de imóvel não residencial. Aplicação do entendimento adotado pelo C. Supremo Tribunal Federal no RE nº 605.709/SP. Decisão reformada. RECURSO PROVIDO[2].

 

A verdade é que a recente decisão do STF mesmo que tenha por trás as melhores intenções, implicou na alteração de precedentes fixados pela própria corte, sem o devido cuidado e observância dos procedimentos; o quê infunde imensa insegurança jurídica.

 

O STF se utilizou do distinguishing para superar os precedentes, porém para se utilizar de tal técnica seria necessário à 1° Turma do STF o ônus argumentativo de demonstrar que os casos paradigmas em que foram fixados os precedentes tratavam exclusivamente de casos de locação residencial, bem como que a razão de decidir pela constitucionalidade da regra da penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação, residiu nesta peculiaridade.

 

Tal premissa cai por terra quando se verifica que no caso do RE nº 612.360/SP, o litígio tinha com pano de fundo locação comercial.

 

De outra banda, o que se verifica é que tanto o julgamento do RE 407.688, (Rel. Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, dj 06.10.2006), como do RE nº 612.360/SP (Rel. Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, dj 16.09.2010), não se fundam, exclusivamente, na tese de que a robustez da garantia fidejussória viabiliza o direito à moradia, na medida em que os proprietários se sentem mais atraídos para colocar imóveis à locação, bem como em razão da fiança não ter custo (ao contrário de caução ou garantias bancárias) e ser mais acessível aos locatários.

 

Pela leitura dos votos se verifica que a colegiado entendeu existir conflito normativo entre a proteção da moradia e a proteção do direito fundamental da autonomia da vontade (pelo qual alguém pode dispor de seu bem oferecendo-o em garantia), bem como que o direito de propriedade não se confunde com o direito de moradia.

 

Em resumo, entendemos que a forma com que a superação dos precedentes ocorreu não observou as cautelas e procedimentos devidos. Devemos lembrar, que o Código de Processo Civil de 2015 almeja a construção de regime dos precedentes, sendo que a regra contida no art. 926 do referido código destaca a necessidade de os tribunais uniformizarem a sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

 

É imprescindível, portanto, que os próprios tribunais que estabelecem as decisões vinculantes “mantenham uma jurisprudência razoavelmente estável“.  Porém, no caso do julgamento do RE 605.709 o que chama a atenção é que a 1° turma do STF não seguiu tese fixada pelo seu próprio plenário, sem observar os devidos cuidados.

 

Neste sentido o deslinde do julgamento do RE 605.709, ganha contornos que vão muito além do mercado imobiliário e que servirão para demonstrar o “compromisso” do judiciário com a construção e um verdadeiro sistema de precedentes.

 

Por: Rodrigo Elian Sanchez

[1] De forma muito superficial podemos dizer que o distinguishing é a prática de não aplicar dado precedente vinculante por se reconhecer que a situação sub judice (aquela que se está julgando imediatamente) não é semelhante (análogo) aos casos em que foram fixados os precedentes.

[2] TJSP, Agravo de Instrumento nº 2147197-95.2018.8.26.0000, 27ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Des. Relatora Daise Fajardo Nogueira Jacot, d.j. 25 de setembro de 2018.