A POSSIBILIDADE DE REVISÃO CONTRATUAL COM BASE NA TEORIA DA IMPREVISÃO E NA TEORIA DA ONEROSIDADE EXCESSIVA, EM RAZÃO DA PANDEMIA DO COVID-19.

No atual cenário de pandemia em que o mundo inteiro sofre enormes prejuízos de ordem econômica, muitos perguntam se, e como, os contratos devem ser rompidos ou relativizados.

A princípio, a regra contratual deve observar o princípio do “pacta sunt servanda”, ou seja, o contrato é lei entre as partes.

 

Entretanto, durante a execução de qualquer contrato, sobretudo naqueles em que a execução é continuada ou diferida, diversas modificações e acontecimentos inesperados podem surgir, trazendo à tona a possibilidade de se relativizar o princípio do “pacta sunt servanda”.

 

Neste ponto, é importante esclarecer o que de fato se enquadraria como “acontecimento inesperado”: um fato é imprevisível quando as partes mesmo tomando as devidas cautelas, não possuem amplitude de prever tal acontecimento. Há também a figura do fato extraordinário, que é quando algum fato novo faz com que o contrato saia do curso normal das coisas.

 

Vale ressaltar que não se consideram fato extraordinário aquelas situações que as partes detinham ciência de que possivelmente poderiam ocorrer, isto é, não se aplica diante de acontecimentos subjetivos e restritos a um caso particular.

 

O jurista Carlos Roberto Gonçalves explica que o evento prejudicial deve surgir “após o aperfeiçoamento do negócio e antes da sua execução, pois, sendo preexistente, não se poderia falar em desequilíbrio superveniente, visto que poderia ter sido levado em conta pelo contraente lesado quando da estipulação da avença” (Direito Civil Esquematizado, Editora Saraiva, 4ª edição, 2014, p. 854).

 

A título de exemplo, os contratos que possuem como objeto safra agrícola, estão sujeitos a fenômenos climáticos (geada, pragas, escassez, etc.), os quais não podem ser considerados como fato extraordinário e tampouco imprevisível, para permitir a resolução ou revisão daquilo que foi entabulado.

 

Também neste sentido, surgiu a ideia da cláusula rebus sic stantibus, que significa “contratos de trato sucessivo que dependem de circunstâncias futuras, se entendem pelas coisas como se encontram”. Ou seja, foi a partir desse conceito que o direito adotado no Brasil criou a teoria da imprevisão, bem como a teoria da onerosidade excessiva.

 

A TEORIA DA IMPREVISÃO consta no Código Civil, em seu art. 317: “quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”.

 

Pode-se extrair da disposição legal acima, que a referida teoria aceita revisão contratual, exceto quando o contrato tem por sua própria natureza, o risco. A revisão contratual pode ser pleiteada no judiciário quando houver as seguintes circunstâncias:

 

  • Que seja contrato cuja execução seja diferida ou continuada no tempo;

 

  • Que ao executar o contrato, tenha havido alteração das situações fáticas vigentes à época da contratação;

 

  • Que essa alteração seja inesperada e imprevisível;

 

  • Por fim, que a alteração tenha promovido um desequilíbrio entre as prestações.

 

Nestes casos, a parte interessada – normalmente o devedor – poderá pleitear que o Poder Judiciário conserve o vínculo obrigacional mediante a revisão de suas cláusulas com o objetivo de reformular os seus impactos econômicos e sociais, com o adimplemento da relação. Para pleitear a revisão contratual, deve-se ajuizar uma ação de revisão contratual.

 

Já a TEORIA DA ONEROSIDADE EXCESSIVA encontra-se no art. 478 do Código Civil: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”.

 

Adiante, o art. 479 estabelece que “a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato”.

 

Nota-se que a teoria da onerosidade excessiva, diferentemente da teoria da imprevisão, além de admitir a revisão contratual, se a parte beneficiada se oferecer para restabelecer o equilíbrio contratual, também admite a resolução do contrato, que nada mais é que a extinção do referido contrato sem seu devido cumprimento.

 

Além dos requisitos para a aplicação da teoria da imprevisão, na teoria da onerosidade excessiva é necessário, ainda, que se demonstre:

 

  • uma situação de grande vantagem para um contratante;

 

  • em contrapartida, uma situação de onerosidade excessiva para o outro”.

 

 

Sendo assim, no cenário em que o Brasil se encontra, em razão da pandemia do Covid-19, tais teorias terão grandes aplicabilidades nas decisões do Poder Judiciário, pois diversos contratos necessitarão de revisões e até mesmo de resoluções.

 

Atualmente, não há ainda grande volume de jurisprudência sobre a aplicabilidade dessas teorias em relação à pandemia do coronavírus, já que é tudo muito recente. Entretanto, o STF[1], recentemente, em 31/03/2020, concedeu medida LIMINAR, na qual afirmou que “O desafio que a situação atual coloca à sociedade brasileira e às autoridades públicas é da mais elevada gravidade, e não pode ser minimizado. A pandemia de COVID-19 (Coronavírus) é uma ameaça real e iminente, que irá extenuar a capacidade operacional do sistema público de saúde, com consequências desastrosas para a população, caso não sejam adotadas medidas de efeito imediato. A alegação do Estado do Espírito Santo de que está impossibilitado de cumprir a obrigação com a União em virtude do atual momento extraordinário e imprevisível relacionado à pandemia do COVID-19 e todas as circunstâncias nele envolvidas é, absolutamente, plausível; estando, portanto, presente na hipótese, a necessidade de fiel observância ao princípio da razoabilidade, uma vez que, observadas as necessárias proporcionalidade, justiça e adequação da medida pleiteada e a atual situação de pandemia do COVID-19, que demonstra a imperatividade de destinação de recursos públicos para atenuar os graves riscos à saúde em geral, acarretando a necessidade de sua concessão, pois a atuação do Poder Público somente será legítima, se presentes a racionalidade, a prudência, a proporção e, principalmente, nesse momento, a real e efetiva proteção ao direito fundamental da saúde. […] Diante do exposto, presentes os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora, DEFIRO A MEDIDA LIMINAR requerida, para determinar a suspensão por 180 (cento e oitenta dias) do pagamento das parcelas relativas aos Contratos de Consolidação, Assunção e Refinanciamento da dívida pública firmado entre o Estado autor e a União…”.

 

Nota-se que a pretensão de revisão de cláusulas contratuais excessivamente onerosas, em razão de fatos supervenientes, tem como pressuposto a circunstância de que o excessivo encargo a ser suportado por uma das partes se reverta em benefício exagerado em favor da outra parte, conforme.

 

Porém, sabe-se que um dos princípios mais relevantes relacionados aos contratos é, sem dúvidas, o princípio da força obrigatória (pacta sunt servanda), segundo o qual o contrato, uma vez celebrado, constitui-se como verdadeira lei entre as partes, possuindo, suas cláusulas, força obrigatória.

 

Neste sentido, destacamos que algumas situações que não autorizam a aplicabilidade da teoria da imprevisão e onerosidade excessiva, dentre elas:

 

  1. Dificuldades financeiras subjetivas (TJSP 1028460.70-2016.8.26.0114);
  2. Oscilações de custo de energia e gasto mensal, (TJSP APL 1001306.61-2017.8.26.0302);
  3. Desvalorização do real, em contrato celebrado em Dólar, pois ao se contratar ou indexar o preço à moeda estrangeira, o risco da variação cambial é inerente ao negócio, (TJSP 0222100-44.2009.8.26.0110);]

 

Diante do exposto, percebe-se que para pleitear uma revisão contratual é necessário que os eventos imprevisíveis atinjam a prestação do devedor. Se um fato ocorrido, por mais imprevisível que seja, não causar uma desproporção para o obrigado, este não poderá exigir a revisão do contrato.

 

Portanto, em conclusão, entendemos que a pandemia de COVID-19 pode ser, dependendo das circunstâncias fáticas, reconhecida com fato extraordinário e imprevisível, autorizando a aplicação da teoria da imprevisão, bem como a teoria da onerosidade excessiva, a fim de revisar cláusulas contratuais, preservando o equilíbrio contratual.

 

Marcelo Barretto Ferreira da Silva Filho

Aline Hitomi Kawakami Yamaguchi

 

[1] Supremo Tribunal Federal STF – MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA: MC ACO 0089124-07.2020.1.00.0000 ES – ESPÍRITO SANTO 0089124-07.2020.1.00.0000